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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Entre os lençóis - Mauro Melo e Gugu do Cavaco

A linguagem do trauma

por Gilson Iannini



Não é de bom tom começar um texto com uma citação longa. Mas há certas coisas que precisam ser ditas, mesmo fora do tom. O parágrafo que se segue é uma citação. Mas não vou usar aspas, nem recuar o texto. Vou me apropriar dele, como se fosse meu, mesmo não sendo.

Diz-se que os sobreviventes que voltavam – e voltam – dos campos não tinham nada para contar, que quanto mais seu testemunho era autêntico, tantos menos conseguiam comunicar o que haviam vivido. Como se eles mesmos fossem os primeiros a serem assaltados por uma dúvida sobre a realidade do que lhes tinha acontecido – se não teriam, por acaso, trocado um pesadelo por um acontecimento real. Eles sabiam – e sabem – que em Auschwitz ou em Omarska não tinham se tornado mais sábios ou mais profundos, nem melhores, mais humanos ou mais benévolos diante dos confrontos do homem, saíram deles, ao contrário, despidos, esvaziados, desorientados. E não tinham vontade de falar sobre isso. Tomadas as devidas distâncias, essa sensação de suspeita nos confrontos com o próprio testemunho vale, de algum modo, também para nós. Parece que nada, no que vivemos nesses anos, nos autoriza a falar. A suspeita nos confrontos com as suas próprias palavras se produz todas as vezes que a distinção entre o público e o privado perde seu sentido.

Parece que o texto fala da realidade brasileira recente, onde as certezas acerca do que estamos vivendo parecem se dissolver no ar. Mas o trecho acima, extraído do texto “Neste exílio – Diário italiano 1992-94”, foi publicado por Giorgio Agamben como uma espécie de epílogo ao seu livro Meios sem fim e descrevia seu próprio estupor diante da crise italiana, ainda no rescaldo da operação “mãos limpas”. O que nos autoriza a falar, a escrever, a tomar publicamente a palavra?

Atônito com o ressurgimento meio difuso, meio artificial e também meio anacrônico de um sentimento de nostalgia em relação à ditadura civil-militar nos cartazes e nas palavras de ordem de algumas manifestações ocorridas recentemente no Brasil e disseminadas nas redes sociais, decidi perguntar a colegas psicanalistas (em um dos casos, um intelectual marcado pela psicanálise) como entender esse quadro. Minha sensação era de espanto. Quando menino e depois, em minha juventude, sempre me intrigava a seguinte questão: quem eram os apoiadores da brutal ditadura militar brasileira? Naquele tempo, a tese, quase banal, de que uma parcela expressiva da classe média teria apoiado fervorosamente o golpe me parecia meio metafísica.

Eu, que nasci em 1969, sempre suspeitei que essa tese fosse verdadeira, mas nunca consegui individualizar, dotar de imagem ou de nome esse ou aquele indivíduo. Para mim, os entusiastas do regime nunca tiveram rosto. Confesso que essa questão era para mim um enigma. O vizinho do primeiro andar, que usa óculos escuros estilo coronel? Aquele tio durão? Os pais daquele colega de turma? A beata da primeira fila na missa de domingo? Tudo me parecia distante e improvável. Como se o meu bairro, o meu círculo de amizades ou a minha família estivessem protegidos desse tipo, que, no entanto, estatisticamente deveria estar mais próximo do que gostaria. Mas eles continuavam, para mim, sem rosto. Como lembra Agamben, “o rosto é o ser irreparavelmente exposto do homem, e, ao mesmo tempo, o seu permanecer oculto nessa abertura”. E continua: “o rosto é o único lugar da comunidade, a única cidade possível. Pois aquilo que, em cada indivíduo singular, abre para o político é a tragicomédia da verdade na qual ele há sempre cai e para a qual deve encontrar uma solução”.

Nas conturbadas eleições do ano passado, esse enigma se desfez por completo para mim. Como se caísse o último véu de ilusão que convenientemente me protegia de uma verdade mais insuportável e mais próxima de mim. De uma hora para outra, os nostálgicos da ditadura mostraram o rosto, fizeram cartazes e gritaram nas ruas, em alto e bom som. Queriam a volta da “ordem”, queriam o verde-e-amarelo contra o vermelho. Não estou discutindo se as razões de uma certa insatisfação com a política atual eram legítimas ou não. Havia e continua havendo muitos motivos de insatisfação, sempre a depender, claro, do lugar de onde se olha. O que me intrigava era o ódio. Era o quantum afetivo que acompanhava as declarações, os proferimentos. Não parecia possível analisar apenas o discurso, os argumentos. Trata-se de outra coisa, de posições afetivas extremamente enraizadas em nossa forma de vida.

Os saudosos da ditadura surgiam com rosto, endereço e voz. E eles estavam muito mais próximos do que gostaríamos de acreditar. Talvez fosse um vizinho, um parente, um colega. É evidente que uma análise desse fato social merece um estudo amplo, que requer o olhar do cientista político, do antropólogo, do teórico da comunicação, entre outros. Mas o que me interessava era outra coisa. Tudo aquilo me parecia um grande retorno do recalcado. Como se o verniz cultural que nos encobre em nosso contato cotidiano de repente se desprendesse, como aquela casquinha de tinta podre que arrancamos com as unhas na parede úmida. Num célebre artigo sobre a guerra, Freud afirma que o conflito desnuda as camadas de cultura que se depositaram nos homens pelo processo civilizatório e “faz vir à tona o homem primitivo em nós”. Algo desse tipo me interessava. A virulência e o ódio que se manifestaram nos discursos e nos gritos eram absolutamente aterradores. E ainda estamos escutando os ecos dessa gritaria, agora sob as vestes pseudojurídicas do “impeachment”, sentença que antecede o crime. Não por acaso, busca-se o crime depois de decidida a sentença, como num conto de Kafka.


Alguma coisa parece ter irrompido no frágil tecido social brasileiro. Como se esse tecido nunca tivesse realmente costurado, apenas alinhavado. Nossas fraturas históricas vieram de repente à tona, sem pudor, de uma forma escancarada, obscena. Aquilo que é traumático na história brasileira – o extermínio dos índios, a escravidão e a ditadura militar – não cessa de produzir efeitos sintomáticos.


Gilson Iannini é psicanalista, doutor em filosofia, professor da UFOP e editor da coleção “Obras incompletas”, de Sigmund Freud (Ed. Autêntica)

http://revistacult.uol.com.br/home/2015/03/a-linguagem-do-trauma/

“A RAZÃO NÃO ADERE AO ERRO TOTAL”


(CARTA ABERTA DE DESAGRAVO FACE AO REPUGNANTE TEXTO DE REINALDO AZEVEDO PUBLICADO NO BLOG DA VEJA, EM 28/04/2015)

“Não respondas ao tolo segundo a sua estultícia; para que também não te faças semelhante a ele. Responde ao tolo segundo a sua estultícia, para que não seja sábio aos seus próprios olhos.”
Provérbios 26:4-5

O sábio poeta hebreu dá um conselho ambíguo. Devemos ou não responder ao tolo? Há na resposta um risco intrínseco. A arena de debate do tolo situa-se no campo da irracionalidade, da ignorância, da vaidade e, por vezes, do ódio. Posta-se o tolo em sítio distante da razoabilidade, do bom senso, da ponderação. Então, o conselho: não desça a essa arena jamais. Logo, não responda ao tolo segundo a sua estultícia. Mas, em aparente contradição, ensina o sábio: não deixe o tolo sem resposta para que não passe por sábio.

Considerado esse paradoxo, é que externo publicamente meu mais veemente repúdio ao que o Sr. Reinaldo Azevedo escreveu em sua lastimável coluna, no blog da Revista Veja, intitulado “Esta vai para o Senado”.

O senhor Reinaldo Azevedo que, nada lê muito além de orelhas de livros, busca ávido entre escritos jurídicos algum texto que lhe sirva de pretexto para atacar a indicação do professor Luiz Edson Fachin ao Supremo Tribunal Federal.

Este pretenso jornalista valeu-se de um livro de minha autoria, resultado de tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, para tentar agredir e infamar a imagem do professor Fachin.

Somente quem não leu o livro, como Reinaldo Azevedo, é que pode fazer a absurda assertiva de que há, na tese, uma defesa da poligamia e, concomitantemente, um ataque à família formada pelo casamento. O autor não subscreve esse disparate e, muito menos, o ilustre professor que prefaciou o livro.

O “blogueiro” da revista Veja promoveu distorção rasteira e fraudulenta de um complexo tema, que remonta às raízes da formação do Brasil e guarda estreita relação com a dominação masculina.

Trata-se de um ataque desleal, covarde, oportunista. O que lastimo profundamente é que uma pessoa como essa, que tem coragem de lançar mão de tão sórdida mentira, seja albergado por uma Revista que se pretende formadora de opinião. Lamento que tantos desavisados leiam estas postagens de textos desqualificados, tomando-os como expressão de verdade.

Ah! Se conhecessem quem é Luiz Edson Fachin e o que a sua obra e atuação jurídica significam para o Direito, no Brasil. É lamentável que sua indicação ao Supremo Tribunal Federal tenha ocorrido neste momento em que a irracionalidade, patrocinada por alguns veículos de comunicação de massa, vem tomando vulto e se verifica um notável esvaziamento do verdadeiro debate político.

Evoco, contudo, as sábias palavras de Dom Hélder Câmara, que sempre me serviram de alento quando vejo avolumar a barbárie, a brutalidade e, às vezes, a bestialidade. Ensinava o sábio Bispo de Olinda: “A razão não adere ao erro total”. Tenho viva esperança de que o Senado Federal não há de deixar-se conduzir pela fúria dos tolos. A luz da razão há de prevalecer.

Marcos Alves da Silva
Professor de Direito Civil
Advogado
Pastor Presbiteriano

terça-feira, 28 de abril de 2015

Evaldo, Carlinhos e Tarcísio

Via Carlinhos Patriolino



Serenata da Chuva.
Música de Evaldo Gouveia e Jair Amorim.
Carlinhos Patriolino (bandolim) e Tarcísio Sardinha (violão 7 cordas). 

Strange Fruit

 Escrito por David Margolick


Conforme Billie Holiday contou depois, um único gesto de um cliente de um clube noturno de Nova York chamado Café Society mudou a história da música norte- -americana naquela noite do começo de 1939, a noite em que ela cantou “Strange Fruit” pela primeira vez.
O Café Society era a única boate de Nova York realmente integrada, um lugar que servia pessoas progressistas e de mente aberta. Mas Holiday lembraria que mesmo ali ela teve medo de cantar sua nova mú- sica, uma canção que atacava de frente o ódio racial numa época em que nem se sonhava com a música de protesto, e se arrependeu – pelo menos momentaneamente – ao cantá-la pela primeira vez. “Não houve nem mesmo uma tentativa de aplauso quando eu terminei”, escreveu em sua autobiografia. “Então uma pessoa começou a aplaudir nervosamente. De repente todo mundo estava aplaudindo.”
O aplauso ficou mais forte e um pouco menos hesitante à medida que “Strange Fruit” foi se transformando primeiro num ritual cotidiano para Holiday, depois em uma de suas gravações de maior sucesso, depois em uma de suas marcas registradas, pelo menos nos lugares onde era seguro cantá-la. Isso porque ao longo da curta vida de Holiday – ela morreu em 1959, aos 44 anos – a can- ção viveu numa espécie de quarentena artística: podia viajar, mas só para certos lugares. E, nos quarenta anos posteriores à sua morte, as plateias continuaram a aplaudir, a respeitar e a se comover com essa balada perturbadora, única na obra de Holiday e no repertório da música norte-americana, que deixou sua marca em gerações de autores, músicos e outros ouvintes, brancos e negros, nos Estados Unidos e por todo o mundo.
O famoso compositor E. Y. “Yip” Harburg chamou “Strange Fruit” de “documento histórico”. O falecido crí- tico de jazz Leonard Feather uma vez disse que “Strange Fruit” era “o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo”. Para Bobby Short, a canção era “muito, muito fundamental”, um modo de trazer essa tragédia que era o linchamento da imprensa negra para a consciência branca. “Quando se pensa no Sul e em leis segregacionistas, naturalmente se pensa nessa canção, não em ‘We Shall Overcome’”, disse Studs Terkel. Ahmet Ertegun, o lendário produtor musical, chamou “Strange Fruit” – que Holiday cantou pela primeira vez dezesseis anos antes de Rosa Parks se recusar a ceder seu lugar a um branco num ônibus em Montgomery, no Alabama –, de “uma declaração de guerra” e “o começo do movimento pelos direitos civis”.
Holiday cantou a música inúmeras vezes em seus últimos vinte anos de vida. Muitas coisas sobre ela – sua aparência, sua saúde, sua vida pessoal, o som de sua voz – pareciam loucamente instáveis nessa época. Embora estivesse morrendo por causa da heroína e do álcool, ela teve também grandes momentos de triunfo. Mas quer a tivessem ouvido em disco, na rádio (onde era tocada de vez em quando por hesitantes djs negros ou djs brancos de alma negra) ou cantada ao vivo por Holiday ou por outra pessoa, todos que se deparavam com “Strange Fruit” ficavam com a música gravada na memória. Muitos passaram anos sem ouví-la, mas ainda hoje sabem recitar a letra de cor. “A não ser pela letra de ‘America the Beautiful’”, relembra Feenie Ziner, uma professora aposentada e escritora, “não sei se existe outra música ou outra cantora de que eu me lembre tão intensamente sessenta anos depois.” Por quê? Porque, como diz Ziner: “Billie Holiday nos deixava arrasados” quando a cantava. Fãs da música não dizem que gostam dela – como se pode realmente gostar de uma música sobre um tema desses? – mas reconhecem seu impacto duradouro. Creditam à mú- sica seu despertar para a realidade do preconceito racial e para o poder transformador e redentor da arte. O que quer que tenham feito, protestado em Selma, participado da marcha de Washington ou passado a vida como ativistas sociais, muitos dizem que foi ouvir “Strange Fruit” que desencadeou o processo. “Será que a empatia pelos injustiçados do mundo teria me atraído para os mesmos planos de carreira se nunca tivesse ouvido Billie Holiday? Duvido”, disse George Sinclair, um sulista que passou a vida trabalhando com os pobres e desfavorecidos. “Billie Holiday pode não ter acendido o estopim, mas inquestionavelmente alimentou a chama.”
E, no entanto, “Strange Fruit”, tanto como música quanto como fenômeno histórico, é surpreendentemente desconhecida hoje. Sem dúvida em grande parte por seu tema, a canção não é um dos muitos clássicos de Holiday sempre tocados nas estações de rádio ou nos alto-falantes de restaurantes, como “God Bless the Child”, “Lover Man”, “Miss Brown to You” ou “I Cover the Waterfront”. É uma anomalia, tanto dentro como fora da obra de Holiday.
“Strange Fruit” escapa a qualquer categorização musical fácil e se esgueirou por entre as fissuras do estudo acadêmico. É artística demais para ser música folk, politicamente explícita e polêmica demais para ser jazz.
Com certeza nenhuma canção na história dos Estados Unidos representa tamanha garantia de silenciar uma plateia ou gerar tanto desconforto. Joe Segal, que lidera há cinquenta anos o Jazz Showcase de Chicago, o segundo clube de jazz mais antigo dos Estados Unidos, ainda não consegue ouvir a música quando ela toca na rádio. “É muito dura”, ele me disse. “Não consigo aguentá-la.”
Lançada em 1939 – mesmo ano de …E o vento levou, um filme repleto de condescendência com os negros e com os artistas negros, e na mesma época em que “A-Tisket, A-Tasket”, de Ella Fitzgerald, era o que se esperava de cantoras negras –, “Strange Fruit” “devolve o elemento de protesto e resistência ao centro da cultura musical negra contemporânea”, escreveu Angela Davis em Blues Legacies and Black Feminism [Legados do Blues e Feminismo Negro]. Mais de setenta anos depois de ter sido cantada pela primeira vez, músicos de jazz ainda falam da música com uma mistura de estupefação e medo. “Quando Holiday a gravou, era mais que revolucionária”, disse o baterista Max Roach. “Ela expressou um sentimento que todos nós, negros, sentíamos. Ninguém falava daquilo. Ela se transformou em um dos guerreiros, essa linda mulher que sabia cantar e fazer você se emocionar. Tornou-se a voz dos negros, e eles a adoravam.” Quando a canção apareceu, a maioria das rádios a considerou provocante demais para ir ao ar; até hoje, mesmo os djs mais progressistas só a tocam de vez em quando. “É muito intensa, e eu quero divertir as pessoas”, disse Michael Bourne, que apresenta um dos programas de jazz mais populares de Nova York. Quem toca a música o faz quase hesitante (“é como esfregar o nariz das pessoas na própria merda”, disse Mal Waldron, pianista que acompanhou Holiday em seus últimos anos de vida), e muitas vezes só quando são obrigados; às vezes, ela é simplesmente pesada demais.
Poucos anos atrás, a revista britânica Q considerou “Strange Fruit” uma das “dez músicas que realmente mudaram o mundo”. Como qualquer ato revolucionário, a canção encontrou grande resistência num primeiro momento. Holiday e o cantor folk negro Josh White, que começou a cantá-la poucos anos depois de Holiday fazê-lo pela primeira vez, eram atacados, às vezes fisicamente, por clientes irados das boates – crackers,1 como Holiday os chamava. A Columbia Records, gravadora de Holiday no final dos anos 30, se recusou a gravar a música. E como acontece com atos revolucionários, a canção deu origem à sua própria cota de mitos, nenhum mais duradouro do que a declaração de Holiday, muitas vezes citada, de que ela própria escreveu ou encomendou a música. “Strange Fruit” foi um divisor de águas, elogiado por uns, execrado por outros, na evolução de Holiday de exuberante cantora de jazz para chanteuse da dor amorosa e da solidão. Assim que Holiday a acrescentou ao seu repertório, parte da tristeza da música parece ter se colado à ela; à medida que ia se deteriorando fisicamente, a música assumia nova pungência e imediatismo. O crítico de jazz Ralph J. Gleason chegou a vê-la como uma metáfora da vida de Holiday. “Ela só era feliz de fato quando cantava”, ele escreveu uma vez. “O resto do tempo ela era uma espécie de encarnação da canção ‘Strange Fruit’, pendurada não em um álamo, mas nos braços da vida em si.”
À sua maneira, “Strange Fruit” pode até ter acelerado o declínio de Holiday. Certamente, uma música que forçou uma nação a confrontar seus impulsos sombrios, uma música que ofendia grande parte do país, não lhe conquistou nenhum amigo influente que pudesse lhe dar uma mãozinha à medida que ela mergulhava no abuso de drogas e se envolvia em cada vez mais encrencas com a lei. “Fiz uma porção de inimigos, sim”, ela disse à revista Down Beat em 1947, logo depois de ter sido presa por uso de drogas na Filadélfia. “Cantar aquilo [‘Strange Fruit’] não me ajudou em nada. Eu estava cantando no Earle [Theater, na Filadélfia], e me fizeram parar.” William Dufty, o coautor da autobiografia de Holiday, tem certeza de que Holiday se apropriava de “Strange Fruit” porque sentia que a música só lhe trouxera dissabores – chegando ao ponto de fazê-la ser convocada por investigadores federais anticomunistas.
Depois de um ciclo inicial de popularidade, “Strange Fruit” caiu em desuso por muitos anos, vítima do conservadorismo de uma era, do idealismo e da esperança de outra e da desilusão de uma terceira. Josh White e Nina Simone estão entre os poucos artistas que a cantaram nos anos 50 e 60. Mas recentemente muitos outros músicos, de Sting a Dee Dee Bridgewater, de Tori Amos a Cassandra Wilson, do ub40 ao Siouxsie and the Banshees, gravaram “Strange Fruit”. Cada gravação é um ato de coragem, dado o domínio permanente de Holiday sobre a música. (Isso talvez não se aplique ao 101 Strings, que gravou uma versão orquestral.) Sidney Bechet fez uma versão instrumental logo depois da gravação de Holiday; mesmo sem a letra, a gravadora Victor preferiu não lançá-la por muitos anos.
Hoje a música aparece em muitos lugares. Leon Litwack, historiador da Guerra Civil e dos períodos de Reconstru- ção, vencedor do prêmio Pulitzer, usa-a em suas aulas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e Stephen Bright a cita em “Pena de morte: raça, pobreza e desvantagem”, um curso que dá nas escolas de direito de Harvard, Yale e Emory. Don Ricco, um professor de Novato, na Califórnia, a toca para os alunos da oitava série quando estão estudando a Guerra Civil; enquanto repassam a dura saga das relações inter-raciais norte-americanas, eles aprendem também a força das metáforas. “Strange Fruit” é o que Mickey Rourke inexplicavelmente coloca no toca-discos para seduzir Kim Basinger em 9 ½ semanas de amor (como era de se imaginar, a música não funciona nem um pouco para criar um clima romântico). O juiz de uma corte de apelação federal a citou alguns anos atrás para demonstrar que a execução por enforcamento era inerentemente “cruel e desumana”. A música foi proibida nas rádios da África do Sul durante a era do apartheid. Khalid Abdul Muhammad, notório discípulo antissemita de Louis Farrakhan e organizador da Passeata de um Milhão de Homens,2 citou-a em discursos de ataque ao racismo contra negros nos Estados Unidos, aparentemente sem saber que a canção foi escrita por um professor judeu branco de Nova York.
O tal professor, Abel Meeropol, que escrevia sob o pseudônimo de Lewis Allan, não criou a canção para Holiday: vários outros, inclusive a esposa de Meeropol, Anne, a haviam cantado antes dela. E, no entanto, Holiday se apossou tão completamente de “Strange Fruit” que Meeropol – hoje mais conhecido por ter adotado os órfãos de Ethel e Julius Rosenberg após a execução dos pais deles do que por seus milhares de outros poemas e canções – passou metade da vida, a partir do momento em que a canção ficou famosa, a lembrar às pessoas que ela era realmente criação sua, e apenas sua.
Nem sempre funcionou: ninguém parecia aceitar que uma canção tão potente pudesse vir de uma fonte tão prosaica. Vários artigos atrelavam Meeropol a uma grande variedade de supostos colaboradores. Uma revista francesa o descreveu como diretor de uma escola para negros em algum lugar às margens do Mississípi. “Um certo Lewis Allen [sic] é citado como autor de ‘Strange Fruit’, mas ele compôs letra e música?”, escreveu o compositor e memorialista Ned Rorem, devoto apaixonado de Holiday, no New York Times em 1995, nove anos depois da morte de Meeropol. “Aliás, quem era ele mesmo? Ele era negro?” (Para os organizadores de uma homenagem a compositores negros no Museu de Belas Artes da Virgínia em 1999 a resposta era sim, pois eles incluíram “Strange Fruit” no programa.)
De certa forma, Meeropol selou seu próprio destino, seu status de nota de rodapé histórica, quando resolveu levar a canção para Billie Holiday: ela, mais do que qualquer outra artista, poderia torná-la efetivamente sua. “Quando você ouve Billie cantando, é quase como uma fita cassete da autobiografia dela”, disse Tony Bennett, que qualificou “Strange Fruit” como “magnífica”. “Ela não cantava nada que não tivesse vivido.”
Trecho do livro Strange Fruit, de David Margolick, publicado pela Cosac Naify
http://www.suplementopernambuco.com.br/suplemento/1398-strange-fruit.html

Por Merecimento

por Karina Buhr

foto Pri Burr
Durante algum tempo só me importava com a sua chegada. Não tinha exatamente um controle de qualidade, era principalmente uma maneira de me manter educada, demônio sedado.
Depois te recebia. Braços abertos bruços.
Você era estilo prêmio semibom, superlombra selfie sexo de si mesmo, ego ótimo, bastante hipervalorizado pelo entorno e eu, a essa altura, parecia embarcar na alta do passe e entendia ter uma sorte plena, pelo meu merecimento, pelo bom comportamento.
No dia a dia não via essa figura, assim, tão atenta a minha figura mesma, mesmo conhecendo direitíssimo, era tão mais fácil me camuflar e me deixar quietinha. Dopada. Fluindo.
Até que tinha algo naquele líquido, aquele veneno no copo, que dava uma náusea que curava um pouco mas não deixava, assim, perfeitamente segura de si a pessoa eu.
E a pessoa você era um monstro, mas por que cargas, eu, minha própria monstra de mim, permitia essa vacilação, perda de horizonte, de chão, essa mesquinhez tosca diária. Por que deixava o veneno meu me corroer e ser o seu adubo?
De cabeça baixa aceitando toda merda e seguindo sem freio na destruição das vontades próprias, na preparação do shape de um jeito estranho, nem bonita ficava pra minha opinião.
Até o sapato usava de outro tipo. O comprimento da saia. Até as palavras regulava. Pensava duas vezes antes do palavrão, antes amigo íntimo e adorado, palavrão bronco, sucesso da língua portuguesa, tradução perfeita, idioma campeão.
E logo eu, que parecia tão, mas tão super dona de mim, pras malfadadas línguas, pra opinião social do meio, pequeno meio.
Grande instrutor de passos, o meio.
Chamava-se machismo.

http://www.suplementopernambuco.com.br/suplemento/75-ineditos.html

Esse texto estará no livro Desperdiçando Rima, que o selo Fábrica 231, da editora Rocco, lança em abril

Antônio Abujamra (1932 - 2015)

sábado, 25 de abril de 2015

Cartas Falsas com LEL

Por Marvioli

O conheci Leonardo. Cantava e tocava pandeiro na saudosa GEBEDIM, grupo de samba que acompanhei, e muito, em apresentações no Vila Camaleão e Bons Amigos. Hoje, o Leonardo é LEL e está se lançando numa nova vibe, o sertanejo universitário. Aqui, no clipe, Cartas Falsas. Valeu, LEL.




Cartas Falsas
Produtora - Audível Filmes (085-88071785)
Direção Geral - Eder Samuel
Cantor - Lel
Compositor - Fleury Neto
Arranjador - Ananias Gois


quinta-feira, 23 de abril de 2015

Som de Prata (Moacyr Luz e PC Pinheiro)



Som de Prata ( Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro) 

Nasceu no Rio de Janeiro
No dia do santo guerreiro
Naquele tempo que passou
Foi o maior mestre do choro
Tinha um coração de ouro
E que bom compositor
Foi carinhoso e foi ingênuo
E na roda dos boêmios
Sua flauta era rainha
E em samba, choro e serenata
Como era doce o som de prata, doutor
Que a flauta tinha
O embaixador dessa cidade
Meu Deus do céu, mas que saudade que dá
Do velho Pixinguinha

Veio da terra de Zambi
Sangue de malê
De uma falange do rei Nagô
Filho de Ogum, de São Jorge, no batuquegê
De benguelê, de iaô
Rainha ginga
É que sua avó era africana
A rezadeira de Aruanda, vovó
Vovó Cambinda
Só quem morre dentro de uma igreja
Virá Orixá, louvado seja senhor
Meu santo Pixinguinha

Ele é de benguelê
Ele é de iaô
É do batuquegê
Ele é do rei Nagô
É sangue de malê
É santo sim senhor

Pixinguinha - 23 de abril de 1897

Foto de Walter Firmo

Cheio de dedos (Guinga)

via Rogério Ribeiro

Tango do Mal - Simone Mazzer



Tango do Mal - autoria Luciano Salvador Bahia.

Jorge de Capadócia - Jorge Ben Jor

São Jorge



São Jorge
Kiko Dinucci

Guerreio é no lombo do meu cavalo
Bala vem mas eu não caio, armadura é a proteção
Avanço sob a noite iluminado, luto sem pestanejar
Derrubo sem me esforçar, a guarnição

A guimba e a fumaça do meu cigarro
Cega o olho do soldado que pensou em me ferir
Com um sorriso derrubo uma tropa inteira
Mesmo que na dianteira sombra venha me seguir

O gole da cachaça esguicho no ar
Chorando na labuta ouço a corrente se quebrar
E o golpe do destino esse eu sinto mas não caio
Guerreio é no lombo do meu cavalo

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Manifestar é preciso, mas não é exato

Por Américo Souza


Em 1984 ocorreram, nos meses de março e abril, diversas manifestações em favor da eleição direta para presidente da República. Passados 31 anos, nos deparamos com novas manifestações, desta vez contra a atual presidente, eleita pelo voto direto.
Vários expressivos pensadores assumem a defesa da livre manifestação de ideias, independentemente dos temas que abordem. Noam Chomsky, linguista e filósofo estadunidense, conhecido por suas posições de esquerda, enfrenta com galhardia posições conservadoras em seu país e afirma que todos devem ter garantido o direito de se expressar. O mesmo dizia Paulo Freire, agente importante das “Diretas Já”, cujas ideias estranhamente parecem incomodar os manifestantes de hoje.
Em tempos assim, a grande questão que fica é relativa aos fundamentos do nosso pensar. Se por um lado a livre manifestação de ideais parece algo dado, por outro –indicam os teóricos da Escola de Frankfurt – importa pesar a influência da indústria cultural na determinação dos modos de perceber a realidade.
Nem toda opinião está imune aos devaneios da consciência ingênua. E convenhamos, atualmente, não é fácil posicionar-se de maneira totalmente livre e consciente. Uma professora experiente, ensinou-me que “quando o passarinho está mudando de pena, não canta”. Ou seja, devemos evitar emitir opiniões apressadas, para evitar o risco de graves enganos de interpretação. Há momentos para tudo, inclusive para calar.
Nem todos que se manifestam “livremente” o fazem exatamente com liberdade, já que a liberdade é o pleno domínio sobre nossas ideias e ações. Existem poucos, como foi Freire e como é Chomsky, cujo pensamento ingovernável estará sempre exposto, sem temores, diante dos outros pensamentos, mediocremente teleguiados por quem pauta de fato as manchetes que tão vorazmente consumimos. O exemplo que nos fica desses dois pensadores é fazer um esforço para que a mediocridade não nos consuma e, assim, possamos agir com e pela liberdade.

Américo Souza é historiador e professor da Unilab. Este artigo foi publicado originalmente na seção de Opinião do jornal O POVO. 

JOGO DAS IDEIAS

Por Karina Buhr


Opinião é coisa que se tem. E cada vez mais se tem antes de se saber o suficiente sobre o assunto da vez.
Velocidades das comunicações todas, que é bom e, às vezes, não. Às vezes, de tão veloz, passa reto, não faz uma marquinha, uma ondinha na água parada.

E aí, o que poderia ser agir junto, forte, com outras ideias parecidas, vira um clube de ideias fechadas, no qual o importante é não divergir, importante é se sentir seguro, agradar.
Repare dos lados.

Os discursos vão se padronizando, pasteurizando e surgem blocos imensos de pessoas que pensam igual, isso valendo pra todas as ideologias e gostos e vontades.

Vozes dissonantes são vistas como inimigas e gente, que é bicho que vai e volta nas ideias o tempo todo, reflete, persegue o que disse pra pensar no que vai dizer, vira gente apagada. Manada é apagada. Pensamento de rebanho, seja de que lado for, só fortalece quem manda em todos.

E é pra lá que estamos indo, nessa ribanceira que caímos vertiginosamente.
Saber no raso é fácil e gera resultados imediatos. Buscas rápidas, nas primeiras páginas de pesquisas, já dá pra ter repertório interessante de termos que nos façam especialistas. Podemos usar aquele charme de que: “Ah nem tanto”; que é isso, eu só me informo.

E o kung fu das ideias que é bom, dos combates de argumentações que fritam o juízo do sabido e do receptor da sabedoria que, por sua vez, cospe outras sapiências de volta na cara, esse está meio bêbado, de bode, apagadinho o bichinho, coitado.

Ler a notícia, analisar por que ela vem pra tirar conclusões próprias e daí se partir pro combate de ideias, isso está caducando. Bom mesmo é repassar e depois ler, melhor ainda repassar, ter muita opinião e não ler. Seguir a cartilha da sua equipe de encaixe, onde você escolheu jogar, o ponto de vista de onde escolheu olhar, é o essencial nessa hora. Pouco importam nuances, contextos, vírgulas, entonações de cada acontecimento.

Importante é provar e novamente deixar claro e sem sombra de dúvidas a que time você pertence. O resto é pra que mesmo?

Saber das entranhas do assunto? Dissecar possibilidades de interpretação? Se preocupar em ser justo caso haja possíveis vítimas e algozes no inquérito da vez? Tudo bijuteria, adorno de opinião.
Bom é seguir no raso, parecer saber, ter aquela opinião quente, certeira e blindada da notícia da hora.
Bom atentar, a turba ensandecida, nós, pro que também vira tiro no pé. A faina de ter razão, transformar acontecimentos frescos em matéria pura de confirmação de discursos pode maquiar, transformar no que não é.
Não ponderar é o mais fácil.

Um fato acontecido, metido numa ideia pré-concebida sobre ele é boia. Faz nem força. Ele já vem ali, prontinho pra te servir, pra te dar razão a cada vociferação, vem educado pra ser seu número.

Fico torcendo pra gente largar mão, nem que seja um pouquinho, mas de preferência um “muitinho”, dessa soberba das ideias. Da vaidade extrema de ter sempre razão, aquela prova de pertencimento àquela equipe, pra esfregar na cara de quem é do time outro na competição da vez.

Poder voltar três casas, pensar, no silêncio da tentativa de compreensão, não necessariamente gritar opinião de pronto, poder respirar e falar, gostar de escutar, poder mudar de ideia quando ouve o outro falante.

Ou ganhar de volta o direito da desobrigação de emitir opinião formada quando mal acaba de ouvir o acontecido.

Que aconteçam nossas opiniões sempre! Mas numa velocidade que não nos anule, que não deixemos de acontecer nós mesmos, no verbo mesmo, na nossa individualidade, até o fim do acontecimento chamado nossa vida.

http://www.revistadacultura.com.br/resultado/15-04-08/Jogo_das_ideias.aspx

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Los Hermanos

Via Gil Sá




Los Hermanos


Yo tengo tantos hermanos,
que no los puedo contar,
en el valle, la montaña,
en la pampa y en el mar.

Cada cual con sus trabajos,
con sus sueños cada cual,
con la esperanza delante,
con los recuerdos, detrás.

Yo tengo tantos hermanos,
que no los puedo contar.

Gente de mano caliente
por eso de la amistad,
con un rezo pa' rezarlo,
con un llanto pa' llorar.

Con un horizonte abierto,
que siempre está más allá,
y esa fuerza pa' buscarlo
con tesón y voluntad.

Cuando parece más cerca
es cuando se aleja más.
Yo tengo tantos hermanos,
que no los puedo contar.

Y así seguimos andando
curtidos de soledad,
nos perdemos por el mundo,
nos volvemos a encontrar.

Y así nos reconocemos
por el lejano mirar,
por las coplas que mordemos,
semillas de inmensidad.

Y así seguimos andando
curtidos de soledad,
y en nosotros nuestros muertos
pa' que naide quede atrás.

Yo tengo tantos hermanos,
que no los puedo contar,
y una novia muy hermosa,
que se llama libertad.

'Os demônios do Demônio'

por Eduardo Galeano

Esta é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito, muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo.
  • ·         O Demônio é mulçumano

Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia, “desde a barba até a parte inferior do ventre...”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.
Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças.
Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.
Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço.
  • ·         O Demônio é judeu

Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes.
A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.
A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.
  • ·         O Demônio é mulher

O livro Malleus Maleficarum, também chamado “O martelo das bruxas”, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.
Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países.
Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços”.
Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.
O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: - As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.
Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva.
O mesmo pânico faz com que os mulçumanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara.
E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.
  • ·         O Demônio é homossexual

Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo
Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.
Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.
Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinquenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.
No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.
  • ·         O Demônio é índio

Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus.
A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.
Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.
  • ·         O Demônio é negro

Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.
Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.
Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso.
Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias. Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.
  • ·         O Demônio é estrangeiro

O “culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, à primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.
O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.
Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.
Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização.
  • O Demônio é pobre

Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinquente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.
Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.
Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, sequestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino.

Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e sequestram países.

A rádio que troca NotícIa - A CBN

Erro ou safadeza? Liberdade de expressão ou utilização de concessão pública para outros fins?
Atentem para o acusado - Marco Aurélio Garcia - homônimo de assessor da presidência.
Vejam a manchete - secretário de Haddad.
CBN a rádio "que troca a notícia".
Aqui, em Fortaleza, ela é reproduzida, em grande parte, pela rádio OPOVO/CBN. 
Marvioli

Por Ivan Longo 
Parte do Grupo Globo, a rádio CBN cometeu o que aparenta ser uma tentativa de associar o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), à corrupção. Isso porque, na tarde desta quinta-feira (16), foi divulgada uma nota no site da rádio com a seguinte chamada: “Irmão de secretário de Haddad é denunciado por envolvimento na Máfia do ISS”.
A nota se refere ao suposto envolvimento de Marco Aurélio Garcia no caso. Garcia, no entanto, diferentemente do que diz o título, não é irmão de um secretário de Haddad. Ele é irmão, na verdade, do secretário estadual de habitação Rodrigo Garcia. Ou seja, secretário do governador Geraldo Alckmin (PSDB), indicado pelo próprio Alckmin.
reprodução

Apesar de no texto conter a informação de que Rodrigo Garcia é secretário estadual, não há qualquer menção à Alckmin como foi feita a Haddad no título.
À primeira vista, pode parecer apenas mais um equívoco de redação ou apuração. Ao observar a correção da nota postada depois, no entanto, fica evidente que a primeira chamada tinha um objetivo claro de associar o prefeito petista ao caso de corrupção. Na nota corrigida, o título é apenas “Sete são denunciados por lavagem de dinheiro na Máfia do ISS em SP”, sem nenhum tipo de associação do secretário e seu irmão a Alckmin, como foi feito na primeira nota com Haddad.
cbn haddad 2

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Classe média à deriva

via Bruno Perdigão

Por Henrique Araújo

Agora que está na moda admitir que não há mudança sem a classe média e que as manifestações dos dias 15/3 e 12/4 vocalizam a maioria insatisfeita com os rumos do governo, é possível ficar mais à vontade para dar um passo adiante e criticar não a legitimidade das manifestações, mas o mérito da causa. Mais que o mérito, a mensagem. O que diz a mensagem? Antes, uma constatação: a classe média são muitas. Falo aqui especificamente de uma classe média cuja visão de mundo se aproxima da fantasia ou da ficção científica – não no que têm de inspiradoras, mas no que têm de delírio e descolamento da realidade.

Começo pelo que já se tornou quase folclórico – o receio de um golpe comunista no Brasil. Ou a suspeita que paira sobre a articulação das forças de esquerda no continente em torno do Foro de São Paulo. Querem a volta das FFAA no comando do país. Desconhecem Levy na Fazenda e Kátia Abreu na Agricultura e a força que tem a bancada da bala no Congresso. Preferem uma fantasia que, com sinal invertido, é a mesma de Sibá Machado, o deputado petista para quem os protestos contra Dilma são maquinações da CIA. De parte a parte, todos se atiram ferozes contra um inimigo que é 99% invenção.

E tudo isso enquanto, logo ali, na Cúpula das Américas, Barack Obama e Raúl Castro se dão as mãos como velhos camaradas, companhias aéreas oferecem voos diretos para a ilha e o presidente dos EUA pede a retirada do país da lista de estados que apoiam o terrorismo. No Brasil, porém, a classe média fia-se no mantra segundo o qual o PT cozinha um golpe em banho-maria, o Bolsa Família sustenta preguiçosos, a terceirização vai garantir os direitos trabalhistas e a redução da maioridade penal vai acabar com a violência. Eis o delírio da classe média: inventar um Brasil que não existe.

O problema não é que mais de 60% dos entrevistados pelo Datafolha não saibam quem é o vice-presidente da República. O problema não é sequer aplaudir Jair Bolsonaro em plena avenida Paulista e berrar “Chupa, Maria do Rosário”, a parlamentar a quem o deputado disse que estupraria. O problema é acreditar que o governo importou um contingente de haitianos para apoiá-lo nas eleições do ano passado.
O debate público degenerou: não se baliza mais pelas opiniões políticas nem ideologias de direita ou esquerda, progressistas ou reacionárias. O problema talvez não seja sequer político, mas psiquiátrico, como sugere o jornalista Bruno Torturra. Pelo menos não acredito que seja político esse ânimo delirante entre milhares, a fixação em Cuba, nos homens de farda e a insistência em pedir que Dilma, uma mulher já sexagenária, vá tomar no cu. Esse ódio não é político. É reflexo de uma deriva moral. É a síntese da desorientação de uma classe que brada contra a corrupção vestindo as cores da CBF.

Pelo menos é o que prova uma pesquisa encabeçada pelo filósofo Pablo Ortellado (USP) e pela professora de relações internacionais Esther Solano Gallego (Unifesp). Segundo o estudo, feito a partir de 541 entrevistas com manifestantes em São Paulo no 12/4, o veículo de imprensa de maior confiança atualmente é a “Veja”, todos os partidos estão em desgraça, os movimentos sociais são malquistos (exceto Vem pra Rua e Brasil Livre), o político de maior credibilidade é Geraldo Alckmin e a jornalista mais confiável no País é Raquel Sherazade. Para essa maioria branca, com nível superior, 30 a 50 anos e renda entre R$ 5 mil e R$ 10 mil mensais, o Brasil é um lugar entre Westeros, o continente mágico de George R.R. Martin, e a Terra-Média, a geografia fantástica de J.R.R. Tolkien. Hoje, arrisco a dizer que a ficção é mais real que o país que parte da classe média escolheu como saco de pancadas.

http://www.opovo.com.br/app/colunas/henriquearaujo/2015/04/16/noticiashenriquearaujo,3423515/classe-media-a-deriva.shtml