Por Vólia Barreira
Era
uma cadela vira-lata e magra de dar dó. Chegou lá em casa de repente, vindo
sabe-se lá de onde, com o rabo entre as pernas, arrastando um barrigão enorme e
com uma cara de fome de vários dias. Não parecia ser jovem, tinha um ar cansado
de quem já havia parido várias vezes.
Nós,
crianças, ficamos com pena daquele animal que parecia tão sofrido, com aquele
jeito humilde de cão sem dono, carregando com visível esforço o enorme
barrigão.
Estava
longe de ser uma cadela bonita, seu pelo amarelado era meio ralo, tinha o
focinho muito comprido e andava sempre com o rabo entre as pernas. Era como se
ela estivesse na iminência de apanhar, o que, aliás, deve ter acontecido muito
por aí, nas suas andanças pela vida. Deixamos que ela se alojasse num canto do
quintal, com a cumplicidade daquela que cuidara de mim desde que nasci, a quem
meu irmão apelidou de “Pedinha”; ela acobertava todas as nossas traquinagens,
pois mamãe não podia nem sonhar com aquela “presepada”.
Todo dia nós lhe levávamos um prato com restos de comida e ela foi ficando por ali enquanto aguardava mais uma ninhada. Sua “casa” era próxima ao pé de seriguela do nosso quintal, onde ficávamos encarapitados a “mangar” da pobre cadela.
Todo dia nós lhe levávamos um prato com restos de comida e ela foi ficando por ali enquanto aguardava mais uma ninhada. Sua “casa” era próxima ao pé de seriguela do nosso quintal, onde ficávamos encarapitados a “mangar” da pobre cadela.
Pedinha,
que vivia há anos lá em casa, não gostava daquele “cão sarnento” como ela
dizia, no entanto, era ela quem lhe preparava todos os dias o prato de comida e
a tigela d'água.
Essa cachorra parece uma geringonça! dizia ela.
Essa cachorra parece uma geringonça! dizia ela.
Para
nós era mais um motivo de gozação; quando a pobre cadela, toda desengonçada,
balançando os peitos caídos, vinha cheirar suas pernas, quem sabe atrás de
comida ou, quem sabe, apenas para agradecer a atenção que nunca teve, ela lhe
tascava um “sai pra lá geringonça”!
E
assim, nós a batizamos oficialmente de Geringonça.
Pouco
tempo depois a cadela já parecia outra. Mais gorda, mais disposta, até menos
feia.
Num
dia qualquer desse tempo, que já se tornara uma rotina e perdera a graça, tão
acostumados estávamos com a “Geringonça”, eis que ela amanhece parida.
Foi
um alvoroço! Uma ninhada de cachorrinhos, todos amarelados como a mãe, uns mais
clarinhos, outros mais escuros. Cinco ao todo e todos querendo mamar ao mesmo
tempo nos peitos murchos da cadela.
Nosso
pai foi categórico: - “nada de ficar com essa cachorrada em casa. Tratem de dar
os filhotes”.
Então
aconteceu uma coisa insólita, que nunca havíamos visto antes e nosso pai nos
explicou mais tarde ter sido essa, a única forma que o animal encontrara de
defender uma parte da ninhada, pois sabia que não teria leite suficiente para
alimentar a todos.
Todas
as manhãs nós dávamos pela falta de um ou dois filhotes, que encontrávamos no
terreno baldio ao lado da nossa casa, separado apenas por uma cerca de arame
farpado.
Nós
os levávamos de volta para a mãe e tornávamos a encontrá-los lá no dia
seguinte.
A
princípio pensávamos que os filhotes fugiam e não sabiam mais voltar, mas isso
era inexplicável, pois os bichinhos mal abriam os olhos e nem se firmavam
direito nas patas.
Como sempre, foi a minha preciosa Pedinha quem descobriu o “mistério”. A própria Geringonça os levava pendurados pelo cangote e os abandonava. Provavelmente ela escolhera aqueles que tinham mais condição de sobreviver. Lembro-me que uns dois chegaram a morrer e os outros nós distribuímos com a meninada da vizinhança. Não ficamos com nenhum.
Naquela
época já tínhamos em casa outro cachorro, criado desde novinho, um cachorro
bonito e macho (que a nossa mãe não gostava de cadela porque vivia no cio), não
de raça pura, mas, “meio raceado” como dizia meu irmão, o dono oficial do cão.
Um belo dia, já sem nenhum filhote e refeita do parto e da amamentação, a nossa Geringonça sumiu, exatamente como chegou às nossas vidas, mansamente, sem alarde (nunca a ouvimos latir, ao contrário do nosso cão, que latia à noite ao menor ruído nos arredores da casa).
Foi
embora sem se despedir e nunca mais a vimos pelas vizinhanças.
Certamente
ela aportou na nossa casa apenas para ter suas crias e se restabelecer, sem
intenção de ficar.
Como
uma cadela de rua, que era provavelmente ela não se acostumaria a ter um dono (ou
vários).
Não
achamos que ela tenha sido mal agradecida, de alguma forma compreendemos que
ela nos agradecera com seu olhar meloso e manso de quem não veio ao mundo para
perturbar ninguém, apenas para ser livre.
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