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segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Sem partido, sem direitos

Sandra Helena de Souza*

Hoje candidatos a uma tão sonhada vaga nas universidades públicas brasileiras estarão fazendo suas provas de redação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Todos que somos professores sabemos como anda sofrível a capacidade de argumentação textual de nossos alunos universitários. Eu costumo pedir pequenos ensaios de duas laudas no mínimo nas minhas avaliações parciais, o que sempre provoca pequeno tremor nas turmas. ‘O que é ensaio, professora¿’ Eu: uma redação do Enem melhorada. ‘Não entendi’. Eu: vocês terão de desenvolver um tema, escolhido entre aqueles que discutimos, introduzindo os pontos dignos de nota, argumentando sob as perspectivas distintas de tratá-los e esboçando algumas possíveis conclusões, com a diferença que farão em casa, tendo acesso aos diversos textos para consulta.

Se for verdade que descobrimos o que pensamos ao ouvirmos o que dizemos, isso ainda mais, ao lermos o que escrevemos. ‘Então tenho que dar minha opinião, professora¿’. Sim, mas dentro de certas balizas formais e de conteúdo, não é um vale-tudo; lembrem-se de que ‘ponto de vista’ é justamente a vista a partir de um ponto. Esse ponto pode estar enevoado, falseado, prejudicado, obsoleto. É para isso que dialogamos, pensamos, escrevemos: para nos conhecermos, examinarmos e melhorarmos.

A Cartilha do Participante Enem, documento que estabelece os critérios de correção da prova discursiva, considera o desrespeito aos direitos humanos um dos itens que podem levar à nota zero, a saber, a defesa de tortura, mutilação, execução sumária e qualquer forma de “justiça com as próprias mãos”, isto é, sem a intervenção de instituições sociais devidamente autorizadas. Também ferem os direitos humanos, segundo as regras do Enem, a incitação a qualquer tipo de violência motivada por questões de raça, etnia, gênero, credo, condição física, origem geográfica ou socioeconômica e a explicitação de qualquer forma de discurso de ódio voltado contra grupos sociais específicos. Isso quer dizer que se espera que ao final de 12 anos de escolaridade formal a juventude brasileira tenha assumido os valores humanistas, seculares e iluministas. Civilizados, modernos.

Uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou a suspensão dessa regra, decisão tomada em caráter de urgência a pedido da Associação Escola Sem Partido. A entidade diz que a regra é uma “punição no expressar de opinião”. “Ninguém é obrigado a dizer o que não pensa para poder ter acesso às universidades”. Uau. Dentro dessa baliza as últimas redações que tiveram o feminismo e o combate à intolerância como tema deveriam bem julgar textos com apologia à servidão feminina e perseguição às religiões de matriz africana, desde que bem escritas. E a universidade em sequência não deveria tomar ‘partido’ por nenhum dos lados. Durma-se.

Não espanta que haja quem faça esse tipo de pedido. São os mesmos que tremem diante de Paulo Freire e do perigo que ele representa para seus obscuros propósitos. Espanta que haja justiça togada para assenti-lo. Estamos diante de uma desfaçatez inaudita. Uma falácia que esconde que a liberdade de expressão é resultado da luta pelo conjunto de valores que agora se quer justamente derrotar. Hipócritas.

E já aparecem aqueles para quem essa é mais uma ‘polêmica’. Não, amigos, isso é apenas um erro. Gravíssimo. Vergonhoso.

*Professora de Filosofia da Unifor, membro do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD)

O duro acerto de contas da mídia com ela mesma.

por Luis Nassif

Fala-se muito na ausência de Estadistas nos diversos poderes da República e nos diversos partidos políticos. Por tal, definem-se aquelas pessoas com visão clara sobre um futuro incerto, que se propõem a construir as bases para a nova era, desviando-se das armadilhas do curto prazo.

Faltou Estadista na mídia.

Ontem, dois diretores de redação procederam a uma autocrítica tardia dos abusos cometidos na Lava Jato. Admitiram que foram a reboque dos vazamentos, que assassinaram reputações de inocentes e que não cumpriram o papel de filtros da informação.


Lembro-me do longínquo 1999, na CPI dos Precatórios. Embora de modo mesmo intenso, havia um vazamento escancarado de informações, de todos os lados, sem que houvesse uma estratégia de cobertura, com cada veículo querendo dar seu furo e comendo nas mãos das fontes.

O principal responsável pelo golpe, ex-prefeito de São Paulo Paulo Maluf, conseguia passar incólume pelo noticiário. Desenvolvi uma narrativa à parte da cobertura, juntei peças que estavam soltas e, remontado o quadro, aparecia nitidamente o papel de Maluf.

A não ser o caso do jornalista Fernando Rodrigues, que saiu nitidamente em defesa do ex-prefeito, tentando desqualificar as evidências que apontavam para ele, o restante da blindagem era fruto exclusivo da falta de preparo da cobertura. Narro essa guerra jornalística no meu “O jornalismo dos anos 90”.

Instado por Otávio Frias Filho, apresentei internamente sugestões para coberturas desse tipo.

O primeiro passo seria criar uma Sala de Situação, com jornalistas experientes, na redação, fora do calor das batalhas diárias, juntando as informações e planejando a cobertura. O grande desafio seria montar uma narrativa inicial, plausível, uma espécie de fio de Ariadne que ajudasse a cobertura a se localizar nos labirintos da notícia.

Depois, ir juntando informações em torno da hipótese inicial, com suficiente discernimento e flexibilidade para mudá-la, caso os fatos levassem a isso. Se fugiria da armadilha de procuradores que se tornam prisioneiros da narrativa inicial e passam a enfiar provas a marteladas para manterem a coerência com o errado.

No caso da Lava Jato houve mais do que essa falta de competência da cobertura da mídia. Havia o propósito político claro de usar as informações como armas de guerra. Não apenas na Lava Jato, mas em toda cobertura jornalística desde 2005. Era óbvio que, no mar de notícias fake que se seguiu à ampliação das redes sociais, a grande estratégia do jornalismo seria o filtro. Preferiam ser os alavancadores das falsas notícias.

Em qualquer grande país, há um grande jornal de centro-esquerda, outro de centro-direita, mas ambos respeitando integralmente a notícia. O respeito à notícia faz parte das qualidades intrínsecas do jornalismo, como gelar é função da geladeira, cozinhar do fogão. A geladeira pode ter mil badulaques. Mas sua qualidade intrínseca é de gelar. Os veículos podem ter linhas políticas distintas. Mas sua qualidade intrínseca é bem informar.

Tudo isso foi deixado de lado. Agora se tem esse desafio inglório de divulgar pesquisas para tentar explicar ao leitor que o jornalismo pátrio é o remédio contra as fakenews.

Que jornalismo? O que anunciou a invasão das FARCS no Brasil, os dólares de Cuba remetidos em garrafas de rum, a ficha falsa de Dilma, o respeitado assessor que não passava de um pequeno estelionatário, o esgoto diário e semanal despejado sobre o país durante tanto tempo?

Por trás do macartismo enlouquecido, praticou-se toda sorte de jogadas. E, como não existe Estadista na mídia, permitiu-se, nesse período, a consolidação final do poderio da Globo.

Enquanto jornais transformavam blogs em seus adversários preferenciais, a Globo abocanhava parcelas cada vez maiores da publicidade das estatais.

Hoje se tem essa situação humilhante, dos jornais equilibristas. Na reportagem, denúncias contra Michel Temer, para impedir a desmoralização final dos veículos. Nos editoriais, apoio, para impedir o corte de publicidade.

Ainda vai levar algum tempo para perceberem que os maiores defensores do jornalismo foram os jornalistas que denunciaram essas distorções monumentais, que acabaram por liquidar com a credibilidade do jornalismo pátrio. Mas que só conseguiram externá-las longe dos jornais. O pluralismo dos anos 90 tinha se transformado em muralha intransponível.

https://jornalggn.com.br/noticia/o-duro-acerto-de-contas-da-midia-com-ela-mesma-por-luis-nassif