Hoje candidatos a uma tão sonhada vaga nas universidades públicas brasileiras estarão fazendo suas provas de redação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Todos que somos professores sabemos como anda sofrível a capacidade de argumentação textual de nossos alunos universitários. Eu costumo pedir pequenos ensaios de duas laudas no mínimo nas minhas avaliações parciais, o que sempre provoca pequeno tremor nas turmas. ‘O que é ensaio, professora¿’ Eu: uma redação do Enem melhorada. ‘Não entendi’. Eu: vocês terão de desenvolver um tema, escolhido entre aqueles que discutimos, introduzindo os pontos dignos de nota, argumentando sob as perspectivas distintas de tratá-los e esboçando algumas possíveis conclusões, com a diferença que farão em casa, tendo acesso aos diversos textos para consulta.
Se for verdade que descobrimos o que pensamos ao ouvirmos o que dizemos, isso ainda mais, ao lermos o que escrevemos. ‘Então tenho que dar minha opinião, professora¿’. Sim, mas dentro de certas balizas formais e de conteúdo, não é um vale-tudo; lembrem-se de que ‘ponto de vista’ é justamente a vista a partir de um ponto. Esse ponto pode estar enevoado, falseado, prejudicado, obsoleto. É para isso que dialogamos, pensamos, escrevemos: para nos conhecermos, examinarmos e melhorarmos.
A Cartilha do Participante Enem, documento que estabelece os critérios de correção da prova discursiva, considera o desrespeito aos direitos humanos um dos itens que podem levar à nota zero, a saber, a defesa de tortura, mutilação, execução sumária e qualquer forma de “justiça com as próprias mãos”, isto é, sem a intervenção de instituições sociais devidamente autorizadas. Também ferem os direitos humanos, segundo as regras do Enem, a incitação a qualquer tipo de violência motivada por questões de raça, etnia, gênero, credo, condição física, origem geográfica ou socioeconômica e a explicitação de qualquer forma de discurso de ódio voltado contra grupos sociais específicos. Isso quer dizer que se espera que ao final de 12 anos de escolaridade formal a juventude brasileira tenha assumido os valores humanistas, seculares e iluministas. Civilizados, modernos.
Uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) determinou a suspensão dessa regra, decisão tomada em caráter de urgência a pedido da Associação Escola Sem Partido. A entidade diz que a regra é uma “punição no expressar de opinião”. “Ninguém é obrigado a dizer o que não pensa para poder ter acesso às universidades”. Uau. Dentro dessa baliza as últimas redações que tiveram o feminismo e o combate à intolerância como tema deveriam bem julgar textos com apologia à servidão feminina e perseguição às religiões de matriz africana, desde que bem escritas. E a universidade em sequência não deveria tomar ‘partido’ por nenhum dos lados. Durma-se.
Não espanta que haja quem faça esse tipo de pedido. São os mesmos que tremem diante de Paulo Freire e do perigo que ele representa para seus obscuros propósitos. Espanta que haja justiça togada para assenti-lo. Estamos diante de uma desfaçatez inaudita. Uma falácia que esconde que a liberdade de expressão é resultado da luta pelo conjunto de valores que agora se quer justamente derrotar. Hipócritas.
E já aparecem aqueles para quem essa é mais uma ‘polêmica’. Não, amigos, isso é apenas um erro. Gravíssimo. Vergonhoso.
*Professora de Filosofia da Unifor, membro do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD)
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