José Sócrates
Autocrítica.
É absolutamente surpreendente que um método tipicamente stalinista,
usado no passado para promover a obediência ao partido, consagrar o
dogma e perseguir a dissidência, seja agora recuperado pela direita
política brasileira para atacar o PT e perguntar a esta legenda onde
está a sua autocrítica relativa ao período em que governou. Quem
tem um mínimo de consciência histórica conhece o terrível mal que
esta palavrinha trouxe à política e como foi intensamente usada por
doutrinas sectárias e autoritárias. Para a minha geração, a
autocrítica estará sempre ligada aos odiosos processos de Moscou,
às confissões purificadoras arrancadas sob tortura e aos infelizes
renegados que no momento do seu próprio fuzilamento ainda gritavam:
“Viva Stalin”. O Partido nunca se engana.
E,
no entanto, a palavrinha resiste… Autocrítica. Onde erramos,
pergunta Ciro Gomes. Ciro, uma das mais importantes vozes
progressistas brasileiras, junta-se assim aos que reclamam atos de
redenção, mais próprios da religião que da política. Devo
declarar, em jeito de prévia declaração de interesses, a
minha admiração por esse político e dizer também que nele me
agrada tanto a sua inteligência e preparação política como o seu
temperamento. Espero sinceramente que nunca se sinta obrigado a fazer
exercícios autocríticos sobre uma característica pessoal que lhe
dá graça e espírito e o afasta do insuportável kitsch político
que domina a cena um pouco por todo o mundo. Onde erramos, pergunta
ele? Bom, certamente que erraram, pois o erro é inerente à condição
humana daqueles que agem politicamente. Todavia, visto o debate de
longe, o que me ocorre imediatamente ao espírito é outra pergunta
– onde não erraram?
Acho
que não erraram quando fizeram do combate à pobreza a vossa
prioridade política. Essa foi uma das marcas que vos acompanhará na
história: 30 milhões. Não erraram também quando apostaram na
redução das desigualdades, incluindo todos os brasileiros numa nova
política econômica na qual – e pela primeira vez – todos
saíram a ganhar. Não erraram quando decidiram apostar na
universidade – a igualdade, a cidadania e o desenvolvimento
econômico dependem do acesso ao conhecimento. Não, não se
equivocaram quando definiram uma política externa ambiciosa baseada
no direito internacional e numa visão multilateral da ordem mundial.
Os Brics deram ao Brasil uma nova e revigorante voz nos assuntos
mundiais e um novo espaço de influência internacional.
Também
não se enganaram quando fizeram tudo isso com respeito republicano
pelas instituições e pelos adversários políticos. Não se
enganaram quando consideraram que as sucessivas eleições que
ganharam não constituíam critério de razão, mas de legitimidade.
Não se enganaram quando consideraram a regra da maioria como sendo
de importância igual à defesa da minoria – para garantir que esta
possa ser aquela amanhã.
A
linguagem política que utilizaram nunca maltratou ninguém, mas
ajudou muitos. O que fizeram foi dar voz a quem há muito se sentia
fora do espaço público e até fora do mundo. Nunca alguma garantia
constitucional se sentiu ameaçada, apesar da intensa batalha
política e partidária. Nunca ficou tão claro que a riqueza mais
importante do Brasil era o seu novo pacto constitucional – um país
plural, diverso e que anseia por igualdade de oportunidades. Se
alguma tradição democrática o Brasil precisará construir no
futuro, será neste período que buscará inspiração.
Sim,
devem ter cometido muitos erros, mas a política é feita disso
mesmo: de propor, de tentar, de errar e de voltar a tentar. De fazer
melhor. Ela é filha da contingência, do risco e da incerteza, e
nisso reside toda a sua beleza. No momento em que pretendem cobri-la
com véus científicos estão a mentir-vos – nada existe de
“científico” na vontade e nas escolhas humanas.
E,
quanto à derrota eleitoral, devo dizer que apreciei sobretudo que
tivesse sido aceita com naturalidade e sem recorrer à detestável
ideia de superioridade moral usada com frequência para diminuir e
deslegitimar os adversários políticos. Mas gostei especialmente da
estética da batalha: que luta, que bravura, que grandeza. No fim da
luta tão desigual existe um vencedor aclamado, mas existem também
os vencidos que, ensanguentados, fixam a audiência com olhar digno –
estamos de pé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário