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terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Insistência no pedido de autocrítica ao PT lembra táticas stalinistas


José Sócrates


Autocrítica. É absolutamente surpreendente que um método tipicamente stalinista, usado no passado para promover a obediência ao partido, consagrar o dogma e perseguir a dissidência, seja agora recuperado pela direita política brasileira para atacar o PT e perguntar a esta legenda onde está a sua autocrítica relativa ao período em que governou. Quem tem um mínimo de consciência histórica conhece o terrível mal que esta palavrinha trouxe à política e como foi intensamente usada por doutrinas sectárias e autoritárias. Para a minha geração, a autocrítica estará sempre ligada aos odiosos processos de Moscou, às confissões purificadoras arrancadas sob tortura e aos infelizes renegados que no momento do seu próprio fuzilamento ainda gritavam: “Viva Stalin”. O Partido nunca se engana.

E, no entanto, a palavrinha resiste… Autocrítica. Onde erramos, pergunta Ciro Gomes. Ciro, uma das mais importantes vozes progressistas brasileiras, junta-se assim aos que reclamam atos de redenção, mais próprios da religião que da política. Devo declarar, em  jeito de prévia declaração de interesses, a minha admiração por esse político e dizer também que nele me agrada tanto a sua inteligência e preparação política como o seu temperamento. Espero sinceramente que nunca se sinta obrigado a fazer exercícios autocríticos sobre uma característica pessoal que lhe dá graça e espírito e o afasta do insuportável kitsch político que domina a cena um pouco por todo o mundo. Onde erramos, pergunta ele? Bom, certamente que erraram, pois o erro é inerente à condição humana daqueles que agem politicamente. Todavia, visto o debate de longe, o que me ocorre imediatamente ao espírito é outra pergunta –  onde não erraram?

Acho que não erraram quando fizeram do combate à pobreza a vossa prioridade política. Essa foi uma das marcas que vos acompanhará na história: 30 milhões. Não erraram também quando apostaram na redução das desigualdades, incluindo todos os brasileiros numa nova política econômica na qual – e  pela primeira vez – todos saíram a ganhar. Não erraram quando decidiram apostar na universidade – a igualdade, a cidadania e o desenvolvimento econômico dependem do acesso ao conhecimento. Não, não se equivocaram quando definiram uma política externa ambiciosa baseada no direito internacional e numa visão multilateral da ordem mundial. Os Brics deram ao Brasil uma nova e revigorante voz nos assuntos mundiais e um novo espaço de influência internacional. 
Também não se enganaram quando fizeram tudo isso com respeito republicano pelas instituições e pelos adversários políticos. Não se enganaram quando consideraram que as sucessivas eleições que ganharam não constituíam critério de razão, mas de legitimidade. Não se enganaram quando consideraram a regra da maioria como sendo de importância igual à defesa da minoria – para garantir que esta possa ser aquela amanhã. 

A linguagem política que utilizaram nunca maltratou ninguém, mas ajudou muitos. O que fizeram foi dar voz a quem há muito se sentia fora do espaço público e até fora do mundo. Nunca alguma garantia constitucional se sentiu ameaçada, apesar da intensa batalha política e partidária. Nunca ficou tão claro que a riqueza mais importante do Brasil era o seu novo pacto constitucional – um país plural, diverso e que anseia por igualdade de oportunidades. Se alguma tradição democrática o Brasil precisará construir no futuro, será neste período que buscará inspiração.  

Sim, devem ter cometido muitos erros, mas a política é feita disso mesmo: de propor, de tentar, de errar e de voltar a tentar. De fazer melhor. Ela é filha da contingência, do risco e da incerteza, e nisso reside toda a sua beleza. No momento em que pretendem cobri-la com véus científicos estão a mentir-vos – nada existe de “científico” na vontade e nas escolhas humanas. 
E, quanto à derrota eleitoral, devo dizer que apreciei sobretudo que tivesse sido aceita com naturalidade e sem recorrer à detestável ideia de superioridade moral usada com frequência para diminuir e deslegitimar os adversários políticos. Mas gostei especialmente da estética da batalha: que luta, que bravura, que grandeza. No fim da luta tão desigual existe um vencedor aclamado, mas existem também os vencidos que, ensanguentados, fixam a audiência com olhar digno – estamos de pé. 

Este é um dos raros momentos na política em que só temos olhos para os vencidos. Eles, os derrotados, representam o Brasil que conheço e que admiro, feito de inclusão social, de alargamento de oportunidades, de compromisso, de moderação política e de ambição democrática. Onde erraram? Não sei, não sei. Só me ocorre dizer onde não erraram.



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