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terça-feira, 22 de abril de 2014

Não apenas a voz

Por Vladimir Safatle

Há algumas edições, eu havia apresentado a ideia de que a esquerda precisa pensar um novo paradigma de governo. Boa parte dos impasses da administração atual pode ser colocada na conta da ausência completa de criatividade política e de experiências de governo mais próximas da afirmação da soberania popular. Experiências trocadas por um tom canhestro de gestão, mistura de cálculo partidário e fetiche por PowerPoint.

Por um lado, de nada adianta tentar escapar do problema relativo ao significado de governar, pois a população não quer apenas nossa revolta. Ela quer a garantia de sabermos como transformar demandas em resultados. A pior coisa a fazer aqui é, no entanto, acreditar que as decisões “técnicas” do Estado pedem um corpo de tecnocratas e burocratas que, por algum milagre gerado no momento da criação, teriam mais condições para decidir do que aqueles realmente envolvidos nos processos.

Essa mentalidade técnico-dirigista é uma das maiores fontes de catástrofes políticas e, nesse ponto, tanto petistas (em especial este último governo capitaneado pela “gerente” Dilma Rousseff) quanto tucanos são indiscerníveis. Tanto a esquerda quanto a direita foram bastante pródigas em dirigismos das mais variadas formas.

Por isso, gostaria de explorar um pouco mais a ideia de governar não ser “dirigir”, mas “garantir as condições para que os cidadãos dirijam a si mesmos, governem a si mesmos”. Isso pode parecer mais um desses slogans vazios com cheiro de state mission de ONG. Podemos, porém, dar mais clareza e concretude a tal ideia.

Um dos pressupostos mais absurdos da política atual é a crença de que os diretamente envolvidos em processos não são capazes de ter as melhores respostas para os problemas gerados no interior desses mesmos processos. Por exemplo, apesar de um infindável número de reformas educacionais decididas por burocratas que há décadas não pisam em uma sala de aula e “ideias geniais e revolucionárias” saídas da cabeça de consultores internacionais pagos a preço de ouro, a educação nacional apresenta níveis de qualidade deploráveis. Há um ritual bizarro de expiação periódica quando os dados do Pisa são apresentados e os brasileiros lutam para ocupar a última posição.

Por que acreditar que ministérios e secretarias da Educação deveriam impor planos? Por que não modificar radicalmente o processo decisório e dar aos realmente envolvidos, ou seja, os professores e profissionais da educação, a condição de discutir e decidir o que deve ser feito? Ninguém melhor do que um professor que passa horas todos os dias em sala de aula para saber o que funciona e o que não funciona, o que significa educar e suas dificuldades. É absurdo crer, por exemplo, que algum consultor ou funcionário teria mais conhecimento técnico sobre educação do que os próprios professores. Eis uma arrogância gerencial que esconde apenas um desejo mal disfarçado de controle e poder.

Sendo assim, o processo decisório poderia ser feito por meio da implementação de conselhos de professores com poder deliberativo (e não apenas com poder consultivo e meramente decorativo). Caberia ao Estado simplesmente garantir o bom funcionamento de tais conselhos, bloqueando aqueles que tentam se servir de lobbies econômicos e outros fatores de dominação, e implementar suas decisões. Ou seja, a verdadeira democracia é aquela cujas decisões técnicas do Estado são tomadas por quem será afetado por tais decisões.

Tal princípio poderia ser implementado em toda e qualquer área da gestão pública. Isso significa que, em uma democracia direta, os poderes Executivo e Legislativo paulatinamente abrem mão de seu monopólio administrativo para funcionarem, cada vez mais, como aparelhos de implementação de decisões tomadas diretamente pela soberania popular. Essa transformação política, que implica uma normalização cotidiana dos mecanismos de manifestação da soberania popular, assim como a pulverização das instâncias decisórias, é a condição prévia para toda e qualquer renovação.

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