Quem sou eu

Minha foto
Agrônomo, com interesses em música e política

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A praça e o poeta são do povo

Por Américo Souza

Américo de Souza
Criada a partir do processo de urbanização que remodelou a cidade na década de 1870, (muito embora formalmente fundada apenas em 1902) a Praça do Ferreira ganhou este nome em homenagem ao seu idealizador, o boticário e político Antônio Rodrigues Ferreira.

Em seus mais de 100 anos de existência, a praça passou por diversas reformas, que modificaram sua aparência, seu tamanho e seus usos. Uma coisa no entanto, permaneceu perene, a sua vocação como espaço maior da arte e da irreverência na cidade de Fortaleza.

Foi na Praça do Ferreira, mais especificamente no Café Java, o mais boêmio dentre os quatro que nela existiram, que nasceu, em 1892, a Padaria Espiritual, agremiação literária fundada por jovens escritores de origem modesta, que sacudiram a cidade com seus textos de refinada ironia e contumaz crítica aos ideais burgueses. 

Nos primeiros anos do século XX eram célebres as serestas em noites enluaradas promovidas pelo poeta e artista plástico Raimundo Ramos de Paula Filho, mais conhecido como Ramos Cotoco, cujas pinturas enfeitavam fachadas de várias lojas situadas no entorno na praça. 

A praça tem sido, também, o cenário preferido para a experiência underground de sujeitos incomuns, que com suas esquisitices, seus trajes invulgares, saberes e fazeres de caráter pouco, ou nada ordinário, protagonizaram, ao seu modo, a rebeldia contra establishment imposto pela invariavelmente reacionária elite alencarina. Neste grupo, consagrado pelo historiador Tião Ponte sob o conceito de “tipos populares”, destacam- se Chagas dos Carneiros, Casa de Urubu, Pilombeta e Tostão. 

Nas últimas décadas, especialmente nestes primeiros anos de século XXI, as tradições artística e irreverente da praça tiveram em Mário Gomes a sua expressão mais eloquente.

Nascido em 1947, Mário Ferreira Gomes teve uma vida dedicada a verso, o que lhe valeu, merecidamente, o epíteto de poeta. Poeta Mário Gomes é como todos o chamavam.

Nunca gostei de suas poesias, li duas ou três, não mais. Entrementes, também não gosto de arte cubista, o que não me impede de reconhecer Pablo Picasso como um dos maiores artistas plásticos do século XX. 

Mário Gomes era, antes de mais nada e é depois de tudo, um poeta, reconhecido como tal por escritores e críticos do porte de Márcio Catunda, Juarez Leitão, Beatriz Alcântara e Ayrton Monte. Não gostar de seus versos jamais de impediu de reconhece-lo poeta, nem de perceber aquilo que nele mais me fascinava: o espírito provocador, a alma desbragada, que nos tirava do conforto de uma visão burguesa e conformada e nos obrigava enxergar as contradições da cidade, a “deselegância bela” como ele cantou em poema sobre a Praça do Ferreira. Praça do Ferreira que ele tomou para si, tornando-a seu castelo, de onde, qual um Dom Quixote pós-moderno, partia a percorrer a cidade. 

“Viveu uma vida dentro dos sapatos”, afirmou certa vez a jornalista Ethel de Paula, uma
das pessoas que lhe foi mais próxima nos últimos anos. 

A morte do Poeta Mário Gomes, em 31 de dezembro de 2014, aos 67 anos, deixou a cidade órfã de um andarilho, que com palavras, gestos e atitudes redesenhou-a a partir de uma geografia estética a um só tempo elegante e bizarra.
 
O carnaval é, em muitos aspectos, uma festa louca, um estado de exceção, em que nos permitimos concretizar fantasias, fazendo do desvario uma expressão de grande lucidez. Desvariadamente lúcido foi como viveu e morreu o Poeta Mário Gomes. 

Foi na perspectiva de demarcar a dimensão da sua ausência, bem como a importância da sua presença (física e simbólica) para a cidade que, fantasiado como o personagem maltrapilho-refinado de que ele, como gesto final e maior de provocação e escárnio, se travestiu nestes derradeiros anos prestei, no palco do bloco Concentra Mas Não Sai, na Praça do Ferreira – seu lugar predileto – uma singela e necessária homenagem ao Poeta Mário Gomes. 

Que seu legado provocador e inconformado siga nos revelar a cidade que insistimos em não ver. 
Que este artista maior da praça do povo se torne, para este mesmo povo, um ícone da resistência à pasteurização asséptica das relações, que fez a aparência sobrepujar o conteúdo.

Nenhum comentário: