Fátima Sudário
Pelos idos de 2003, o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho
coletou a clássica expressão ‘Bonito pra chover’ para titular um livro
que reúne ensaios sobre diversos aspectos da nossa cultura. Uma escolha
feliz. Afinal, pelas bandas de cá, nuvens carregadas e escuras formam
uma paisagem bela, desejada, feliz, inspiradora e cheia de expectativa.
Sem contar a necessidade que temos dela.
As primeiras
chuvas intensificam o nosso sentimento de bem querer. Em tempos de rede
sociais, pipocaram imagens e declarações de amor com início de ano
chuvoso. O carnaval debaixo dos pingos foi celebrado, o show da Ivete
Sangalo também, a busca pelas bicas da Cidade viraram caça ao tesouro,
assim como as sementes na terra alimentam esperanças. E ainda tem aquele
cheirinho gostoso de terra molhada.
É sensorial mesmo. A gente curte tempos bonitos pra chover. A questão é o quão duradoura é essa exaltação. E não demora.
Logo
a chuva vira ameaça. O júbilo vai se transformando em preocupação com
rotinas alteradas e noites insones para quem vive em áreas de “risco”. A
chuva passa a ser a culpada por todos os transtornos das nossas vidas.
Aliás, transtorno é a palavra mais associada à chuva entre nós. Um
discurso reforçado por nós, jornalistas. Infelizmente.
É
uma relação conflituosa, trafegando entre o bem querer e a rejeição. O
que é incômodo e inexplicável. A chuva é bênção. Não é transtorno.
Especialmente nas áreas urbanas, porém ela expõe as mazelas que levam
aos alagamentos, deslizamentos, desabrigo, trânsito emperrado... Assim
como expõe a nossa incapacidade de cidadãos, e a dos gestores públicos,
de convivência com água que o céu nos manda.
O lixo jogado que
se acumula nas ruas vai entupir bueiros e obstruir canais e mananciais,
que demoram a ser limpos, riachos são aterrados pela especulação
imobiliária com a conivência do poder público, asfalto virou política de
governo, árvores são cortadas por qualquer motivo, leitos dos rios são
ocupados.
Ou seja, estamos falando de planejamento urbano
pífio, especulação criminosa e educação cidadã zero. A natureza, óbvio,
sofre com tudo isso, mas não deixará de seguir seu rumo. Então, meu
povo, menos arrogância e menos incompetência. Vamos dar graças pela
chuva e fortalecer nossa relação de amor com ela.
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2016/01/25/noticiasjornalopiniao,3566253/a-nossa-estranha-relacao-com-a-chuva.shtml
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