Hermínio Bello de Carvalho
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Herminio Bello de Carvalho |
A discussão me atrai, sobretudo porque ainda não a vi tratada pelo seu viés cultural. Desde menino sou atraído por biografias, autorizadas ou não. E também por autobiografias. Fico arrepiado em lembrar o que Ruy Castro passou com seu livro sobre Garrincha, interditado pelas filhas do jogador. E agora me deparo com a notícia de que a biografia de Noel Rosa continua interditada pela sua família, herdeira de sua história. Tão logo surgiram rumores de que o Roberto Carlos iria judicialmente retirar de circulação a sua bela biografia, tratei de comprar logo uns três exemplares. Ótimo e respeitoso livro, por sinal.
A biografia de Clementina de Jesus está sendo negociada com seus “herdeiros”, uma nova profissão a ser reconhecida pelo Ministério do Trabalho.
Mas vamos lá, ao tal viés cultural. Foi com o pseudônimo de Quincas Laranjeiras, violonista muito admirado por Villa-Lobos, que Sergio Cabral iniciou sua carreira de biógrafo tendo Pixinguinha como foco de sua pesquisa. Contextualizemos: 1978, a Presidência da República era ocupada pelo General Ernesto Geisel, Nei Braga era o Ministro da Educação e Cultura e a Funarte, recém-fundada, tinha na Presidência o escritor José Candido de Carvalho (“O Coronel e o lobisomem”) e Roberto Parreira na direção executiva.
Nessa mesma época o Macalé e o Sergio Ricardo pensaram numa sociedade sem fins lucrativos a que chamamos Sombrás: Tom Jobim foi eleito presidente e eu o seu vice. E nessa mesma época o Albino Pinheiro inventou o Seis e Meia, e me levou para estruturar artisticamente o projeto. Passo ao largo dessa história, já bastante conhecida (ou não?), reduzindo-a ao essencial: inventei um Projeto Pixinguinha, que outra coisa não era senão um macro filhote do “Seis e meia” do Albino, e que a Funarte adotou como uma espécie de carro-chefe graças à visão do Roberto Parreira, faça-se justiça a ele. Acabei alocado numa Assessoria para Projetos Especiais da Funarte, e a história toma outro rumo: pensei num projeto de apoio à pesquisa e conseqüente publicação de biografias.
A Funarte já tinha em sua equipe o pesquisador Ari Vasconcellos. Deve-se a ele, bem antes de minha entrada na Instituição, a edição de livros importantíssimos como “Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira”, de Jota Efegê; “Ary Barroso”, de Mário de Moraes; “O choro”, de Alexandre Gonçalves Pinto; “Na roda de samba”, um clássico de Francisco Guimarães, o celebrado “Vagalume”; “Chiquinha Gonzaga”, de Marisa Lira e “Samba”, de Orestes Barbosa. Não foi pouca coisa, não.
Sobretudo se levarmos em conta que Ari já publicara em 1964 um alentado “Panorama da Música Brasileira”, em dois volumes – e em 1977 o “Raízes da Música Popular Brasileira”. Trabalhava muito esse Ari Vasconcelos. Quando Carlos Lacerda assumiu a governança do Estado, instalou o Museu da Imagem e do Som, instituição idealizada por Mauricio Quadros, que foi nomeado primeiro diretor daquela Casa.
E quem soprou no ouvido de Mauricio a ideia dos depoimentos gravados pelo MIS?
Nosso Ari Vasconcellos. Mas não vamos esquecer que o rancoroso e talentosíssimo J. Ramos Tinhorão já estava na área desde 1966, e o Jornal do Brasil, façamos justiça, tinha uma equipe de responsabilidade abordando assuntos da música popular . E lá militava o jovem Sergio Cabral, ainda sem nenhum livro publicado – e aí temos que retornar ao assunto Funarte, porque só bem depois ela institucionalizaria o Projeto Lucio Rangel de Monografias.
Ela, a Funarte, estava ainda provisoriamente instalada no Museu Nacional de Belas Artes. O “Pixinguinha, vida e obra” não só inaugurava a carreira de biografo de Sergio Cabral, como também abriu caminho para a edição do “Filho de Ogun Bexinguento” – livro da dupla Marilia T. Barboza da Silva e Arthur L. de Oliveira Filho, menção honrosa do mesmo concurso nacional de monografias que premiara, com justiça, nosso grande Sergio.
O projeto Lucio Rangel de Monografias viria no rastro do sucesso de outro Projeto, o Pixinguinha. E aí sim a coisa tomou vulto: foram 30 (trinta!) títulos publicados, uma comissão de críticos e pesquisadores escolhendo os temas que mereceriam sofrer abordagem. Havia uma linha conceitual direcionando as escolhas: vamos priorizar as figuras marginais de nossa cultura, tipo Assis Valente e Wilson Batista, para ficarmos em apenas dois exemplos. Peraí, lembremos mais: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Cartola, Candeia, Garoto, Radamés Gnattali.
Passaram-se os tempos, o filão ganhou musculatura. Mas a coisa foi ficando mais difícil ao surgir a tal categoria a que já me referi, e a ser reconhecida pelo ministério do Trabalho: a do “herdeiro”.
Essa figura que surge das sombras para, de alguma forma, levar alguma vantagem pecuniária em cima de alguém que se dedique a escarafunchar a nossa cultura. Essa figura sinistra tem sim o poder de embargar um livro.
Enfim: aonde quero chegar?
Como sou um bestalhão e ingênuo, continuo acreditando em certas instituições. Um dia, um “herdeiro” (ou meio herdeiro) de Mãe Quelé foi aos jornais declarar que eu havia ficado com o espólio de Clementina, daí a filha dela estar morrendo à mingua, sem qualquer assistência.
Ele, o difamador, ostentava corrente de ouro e navegava pela vida a bordo, se não me engano, de uma Mercedes Benz. Não que ele tenha usufruído esses bens às custas de Quelé, coitada: já velhinha, sobrevivia às custas de shows em casas noturnas pequenas, e não havia como intervir na situação. Clementina era território com diversos donos, o que se podia fazer era às escondidas. Essa história, eu sei, ainda vai sair em livro.
Quem se sentir prejudicado por certo irá atrás do “prejuízo” ao ler esse final inglório da grande Dama. Quando foi publicada a matéria citada no parágrafo anterior, fiz o que devia: mandei uma carta ao jornal, que se negou a publicá-la. O editor do caderno explicava que “não queria criar polêmica”. Ou seja: que eu me conformasse com a difamação. Fui pro computador, escrevi um livreco sobre o assunto, o editei às minhas custas e mandei para alguns amigos. Nenhuma nota nos jornais. Mas, para muitos, esse meu retrato desfocado e cheio de estrias na alma terá me causado danos.
Fico à vontade para tocar no assunto: o “Timoneiro”, meu perfil biográfico assinado por Alexandre Pavan, jamais sofreu interferência de minha parte em sua elaboração, e só o li depois de publicado. Fui sim entrevistado por ele diversas vezes, para desfazer dúvidas sobre episódios controversos como o Projeto Pixinguinha. Está longe de ser uma biografia “chapa branca”.
Até porque não havia nenhum corpo dentro do armário pra se esconder: as portas foram abertas, sem fantasias.
Contraditoriamente, respeito a opinião de Gilberto Gil e, agora, do Chico Buarque quando se refere ao direito de privacidade. Se um “biógrafo” se aventurar a escrever a biografia de uma pessoa que seja, por natureza, polêmica – sabe-se o resultado.
Vai escarafunchar os lençóis amarrotados do biografado, com quem dormiu ao longo da vida, vasculhar gavetas metafóricas em busca de pistas que o conduzam a aspectos, digamos, “degradantes” da personalidade enfocada, buscar guimbas de maconha nos cinzeiros, drogas camufladas nas meias – toda sorte de “desvios” que fazem, sim, a delícia de um tipo de leitor que existe no mercado – leitor que nunca irá, por exemplo, comprar a monografia de Paulo da Portela ou Radamés Gnattali.
Mas esse direito à privacidade que ganhe, dentro dos fóruns legais, musculatura suficiente que permita ao difamado defender-se amplamente e ressarcir-se dos danos causados à sua vida pessoal. A biografia do político José Dirceu, recentemente publicada, mereceu uma análise na revista Piauí que destrói a credibilidade do autor do trabalho, tal a soma de erros apontados naquele trabalho. Não sei que rumo tomou o caso. Não tenho qualquer simpatia pelo biografado, diga-se de passagem.
Mas temos que nos reconhecer como personagens que fazem parte desse mundinho a que se convencionou rotular de “pessoas públicas”, em torno das quais grassam histórias mergulhadas em espessas nuvens de maledicências – e é esse o preço, afinal, eu se paga quando somos, por natureza, instigadores e fadados a mergulhar, sem proteção, nas águas escuras onde a nossa cultura se charfunda. E aí viramos uma espécie de mictório público, onde qualquer um pode mijar em cima, sem que alguém saque um talonário de multas para punir o infrator. Experimente entrar numa banca de jornais e veja o número de revistinhas ordinárias especializadas em explorar esse veio que existe desde que o mundo é mundo. Um culto ao narcisismo que beira o ridículo.
Lembro da “Coluna da Candinha” na extinta Revista do Rádio, década de 50, auge da popularidade do rádio. Vivi isso na pele: aos 16 anos será repórter de uma revistinha de rádio, e publiquei uma matéria sensacionalista, que revelavam segredo guardado a sete chaves: quem era o grande amor de Marlene. Quem? A mãe dela. Mais ridículo e ingênuo impossível.
Enfim: que se processe o caluniador. Pague-se esse preço: caso contrário, estaremos sendo censores.
E a censura nos conduz a uma outra vertente que dela emana: a auto-censura. Proibimo-nos de
expressar nossas verdades. E logo nós, artistas, que vivemos da invenção, que usufruímos da vida o
que ela nos oferece do bom e também do pior. Derrapamos, às vezes, quando nos sentimos
agredidos – ou quando agridem uma pessoa a quem devotamos admiração e respeito.
Nelson Motta teria violado esse direito à privacidade a que se referem Gilberto Gil e Chico Buarque ao escrever a biografia de Tim Maia? E a vida daquele cantor e compositor poderia ser abordada de outra forma? E Cazuza? Em nenhum momento a família interditou qualquer obra que enfocasse a vida pessoal do compositor.
Enfim: biografias só autorizadas é censura, sim. É censura uma pessoa pública (ou não) ser objeto de um livro, e negar ao autor o direito de publicá-lo. Pior ainda: é querer intervir em sua elaboração, tornando a obra uma biografia “chapa branca”.
Quando falei do Projeto Lucio Rangel de Monografias, foi porque encontrei minha querida Ligia Santos, filha do legendário Donga (“Pelo telefone”) – uma das poucas fontes primárias que ainda podem falar de alguns contemporâneos de seu pai – como é o caso de João da Bahiana. As “fontes primárias” (aquelas que conviveram diretamente com figuras já desaparecidas) estão rareando. Quase todos os contemporâneos de Mário de Andrade já se foram. Há pouco, perdemos o cenógrafo Fernando Pamplona, aos 87 anos. Quem melhor escreveria sobre Joãosinho Trinta, seu discípulo, e a quem considerava um gênio?
Entendo que o assunto é polêmico, e que a discussão, em nenhum momento, privilegiou esse viés cultural que tanto defendo.
Aguardemos os livros sobre Wilson Batista (Rodrigo Alzuguir, o autor) e um outro sobre Clementina: “Quelé: a voz da cor”, de Felipe Castro, Janaina Marquesini, Luana Costa, Maria Kobayashi e Raquel Munhoz. Aposto nesses jovens pesquisadores.
Termino com uma recomendação: não percam o musical “Clementina, cadê você”. O autor? Pedro Murad. A direção, de Duda Maia.
Imperdível.