Quem sou eu

Minha foto
Agrônomo, com interesses em música e política

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

O FAROL TATUADO

por Romeu Duarte

Os escravos me levantaram em meados do dezenove sobre este morrote aqui no Serviluz, sobranceiro sobre o mar e o resto da paisagem da jovem cidade. Construíram-me robustamente neoclássico, minhas paredes de alvenaria grossas de mais de metro, minha planta em octógono, as ameias me dando um ar de castelo. Durante décadas a fio fui segura referência para muito sujeito desnorteado na selva marinha. Tanta nau orientei, tanto barco salvei do naufrágio iminente, o sorriso de alívio dos comandantes e dos pobres marujos. Entretanto, há tempos estou cego. Tem para mais de cinqüenta anos que perdi a luz do meu olho, tiraram-me a tocha de guardião do oceano, aposentaram-me do meu mister. Hoje sou apenas um prédio sobre uma duna, e como dói.


Acervo Nirez
Lembro-me dos meus dias de glória. Elegeram-me símbolo arquitetônico da capital e do estado, minha efígie se encontra no brasão e na bandeira deste Ceará velho de guerra. Ganhei canção bonita do Ednardo e um belo quadro do belga Georges Wambach. A admiração chegou a um ponto tal que, depois de aposentado, transformaram-me em museu e me tombaram como patrimônio histórico. Claro, fiquei orgulhoso, não é qualquer edifício que vira monumento, lugar de memória, da noite para o dia. Se antes era um marco para quem vivia nas ondas, hoje sou, com licença da palavra, bem imóvel protegido. Chique, não? Que nada, quem tiver coragem de me fazer uma visita vai encontrar um triste cenário, de dar dó, de sentar na coxia e verter mil lágrimas de esguicho.

Carrego a má sina do bairro que se me presta de chão. O abandono, a negligência e o desprezo que devotam à gente que resiste aqui são também sentidos por mim. Zona de povo pobre, não vai lá que é perigoso, maconheiro do Titanzinho, rapariga do Farol. A função cultural que cerimoniosamente me reservaram acabou-se, não sirvo mais para nada. Cercado de casebres e tendo como parceiro de infortúnio o arranque de um fortim colonial, estou cheio das mazelas das construções antigas e mal cuidadas. Com as portas sempre escancaradas, sirvo de abrigo aos amores clandestinos e às vítimas dos desarranjos intestinais. Minha espinha dorsal, a escada helicoidal em ferro forjado, comida de ferrugem e sal. Quem deveria zelar por mim só se esquiva.

Hoje de manhã fui acordado por uma algazarra dos diabos. Gente jovem e ruidosa, cabelos ao vento, idéias nas nuvens. Sobre andaimes e com sprays nas mãos, cobriram-me de grafites escuros, guirlandas, barcos, seres imaginários. Sorrindo, dizem que assim prestarão mais atenção em mim, me resgatarão do esquecimento, me recuperarão. Negrada, grato pela força e pelo bom mocismo, mas, como prédio, e tombado, careço de outros carinhos, bem mais adequados e urgentes. Minha natureza é proteger, dar forma a uma função. Restaurado e posto a serviço de um novo e útil uso, tanto poderia ajudar as pessoas daqui, colorindo suas vidas cinzentas. Essas tatuagens ficarão como marca de uma ação bacana ou de um ato inconveniente e ilegal?

Idos os meus pretensos benfeitores, resto na minha mesma melancólica situação, agora vestindo esta nova e berrante roupa que briga com a minha austera modinatura. Ah, Terra da Luz, mãe da marmota. A noite cai, as estrelas surgem no salão do céu, a lua se insinua por entre as nuvens. Aqui é ruim, mas é bom, perto da praia e com a brisa a favor, só falta melhorar. Esses passos a esta hora, quem vem lá? Não acredito, são pichadores e já deram início às suas atividades, subindo por minhas paredes, galgando a minha torrinha, gravando em mim seus rabiscos em sua agoniada coreografia. Meu corpo de pedra e tijolo, um palimpsesto de garatujas incompreensíveis e boas intenções artísticas. E então, amigo, sou patrimônio de todos ou Casa de Mãe Joana?

http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/11/25/noticiasromeuduarte,3167615/o-farol-tatuado.shtml

Nenhum comentário: