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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

SOMOS TODOS UMA OVA

por Henrique Araújo

Henrique Araujo

Não sei como tudo começou, se foi antes ou depois dos ataques terroristas a Paris, cerca de um ano atrás. Fato é que, em algum ponto nebuloso da história recente, essa ideia enganosa de livre e irrestrita adesão às dores do outro rapidamente se difundiu, ganhou vida nas redes sociais e encontrou sua total falência no mercado publicitário, ainda que a serviço de uma boa causa, como a campanha da Agência África para a Vogue Brasil sobre os Jogos Paralímpicos mostra agora.

Antes, um parêntese: além de incerta, a genealogia do “somos todos” é de gosto muito duvidoso. Na época do Charlie Hebdo, parecia honesto e verdadeiramente importante fazer parte daquele sentimento, que acreditávamos pertencer a todos, sem nos perguntarmos de quem estávamos realmente falando. O “todos”, ali, funcionava muito bem como hashtag, mas ia mal como elemento concreto de coesão entre pessoas.

Desde quando concordamos em supor que uma pessoa pode ocupar o lugar de outra sem que lhe passe pela cabeça o que é ter um braço a menos ou uma perna mecânica? Pior: que licença temos para não apenas representar, mas substituir essa dor, escondendo sua origem e, em seu lugar, elegendo uma dissimulação ao que se pretendia realçar?

Os criadores da peça da África acharam que isso tudo era mero detalhe. Rapidamente: o anúncio tem - ou tinha, não sei mais - o objetivo de dar visibilidade aos Jogos Paralímpicos no País, que começam em 7 de setembro. Com o problema de baixa venda de ingressos e falta de patrocínio, a agência de publicidade, a pedido da revista, convidou os atores Cléo Pires e Paulinho Vilhena para viver dois paratletas, Bruna Alexandre (tênis de mesa) e Renato Leite (vôlei sentado).

A causa é nobre: em contraste com a alta demanda de bilhetes para as Olimpíadas e a farta cobertura da imprensa, as Paralimpíadas são um fiasco. A impressão que se tem é de que o espírito de congraçamento que serve de esteio aos jogos se restringe aos atletas que possuam todos os membros e nenhuma restrição à sua capacidade motora. Fora desse ideal de corpo apolíneo, com o qual nos identificamos mais facilmente, não vale a pena acompanhar. Sem audiência, os patrocinadores fogem. Sem dinheiro, não há visibilidade. Sem visibilidade, é como se esses paratletas não existissem. E aí entram os atores. Sua função é tornar real o que já é real, mas ninguém vê. Estão ali, ainda que bem-intencionados e com a concordância dos paratletas, a fim de passar uma mensagem de contraste. Poderia ser comigo, o Paulinho. Poderia ser com a Cléo. Isso soa melhor ou pior para vocês?

O resultado, como se previa, foi desastroso. Sob o mote de “Somos Todos Paralímpicos”, a campanha mostra quem não precisa aparecer e esconde quem deveria se exibir. Não sei se há parâmetro na história da propaganda nem justificativa para o que fizeram. É caso mais para se refletir. E rever práticas já usualmente aceitas. A gente não quer atores interpretando negros nem pessoas com deficiências. Queremos negros nas novelas e nos jornais, não apenas como garotas do tempo, mas nas bancadas também. E paratletas de verdade dizendo o que sentem e as dificuldades que encontram pelo caminho.

Sem isso, o “somos todos” é falacioso. É uma piada de péssimo gosto.

http://www.opovo.com.br/app/colunas/henriquearaujo/2016/08/25/noticiashenriquearaujo,3652067/somos-todos-uma-ova.shtml

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