Por Iana Soares
Meu avô tinha costume de anotar receitas para minha avó Ilza. Acumularam cadernos com aquela letra desenhada como quem inventa versos. No final de cada lista de ingredientes e modos de preparo, tiradas de revistas e programas de TV, escrevia: “receita anotada por Luís, no dia tal do ano tal”. A assinatura tinha mais arte do que qualquer verso de Drummond ou Álvaro de Campos, meu Pessoa favorito.
O Vô Luís tinha também um gato de nome camaleônico. Às vezes era Mimi, outras Zé Dirceu. Tinha coleirinha vermelha que lhe conferia um tanto de personalidade, no meio do pelo cinza escuro. Ainda não tinha sido inventado o adjetivo “petralha”, mas meu avô descobriu a raiva da estrela no primeiro governo. Votou no Lula, mas sentiu a traição na reforma da previdência. Depois veio o mensalão. Cada vez que aparecia o Pallocci, debatia com a televisão como se conseguisse teletransporte imediato para Brasília. Quando o gato fazia besteira, reclamava soltando um “esse Zé Dirceu é um safado”.
Esta semana ensinei a amigo como fazer mousse de limão com morango e kiwi. Em troca, aprendi a cozinhar tortilha de batatas, feijão com arroz espanhol. Lembrei dos cadernos.. Nunca anotei receita e tive saudades. Meu avô não precisou ser poeta para fazer poesia.
Não sei como amanheceremos depois da manifestação esquisita de ontem. Entreguei o artigo antes da tal passeata, mas acho que é a primeira vez que me angustia ver gente na rua se manifestando. É estranho. Já participei de caminhadas da Via Campesina, dancei torém com o movimento indígena, reivindiquei melhorias na universidade pública, fui à Parada da Diversidade Sexual, andei o Centro de Fortaleza contra a Guerra do Iraque. Agora, me assusta ver que o impeachment foi pedido na Câmara por Jair Bolsonaro. Aquele que disse que só não estupraria uma deputada porque ela não merecia. Um deputado homofóbico e racista com vasta coleção de declarações criminosas.
Tem algo errado em manifestação que fala de impeachment de forma tão rasa. Tem algo perigoso em tanta gente mobilizada pelo ódio que não consegue se esconder sob a máscara de “cidadãos de bem”. Lembrei do antipetismo do vô Luis. Ele usava panelas para investigar o amor, nunca para destruir uma democracia.
Iana Soares
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2015/03/16/noticiasjornalopiniao,3407707/mimi-ou-ze-dirceu-o-gato-do-meu-avo.shtml
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