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segunda-feira, 2 de maio de 2011

A bênção do pai

por Ronaldo Correia de Brito


Era lei na nossa casa que os filhos homens não podiam chorar. No dia em que fui embora para o Recife senti um aperto no coração, a garganta travou, os olhos encheram-se de lágrimas. Sobravam razões para isso. Ia morar numa cidade grande e desconhecida, não tinha endereço certo e nem havia feito matrícula no colégio. Tudo nebuloso no futuro do menino de dezessete anos que deixava a casa paterna, o paraíso verdejante do Cariri cearense e sua gente acolhedora. Como na canção de Caetano Veloso, minha mãe e meus sete irmãos me acompanharam até a porta. Apertei suas mãos sem dizer uma única palavra, os dentes cerrados. Se deixasse escapar um singelo adeus, o açude represado de lágrimas romperia. Meu pai me olhava firme, vigilante. Com ele planejara largar a vidinha feliz, conhecer outro mundo, tentar a sorte. Traçamos um projeto que eu deveria seguir à risca: me formaria em medicina, levaria os irmãos mais novos ao Recife e ajudaria a educá-los. Árduo compromisso.

Desde o ciclo migratório da década de cinquenta, quando as fazendas sertanejas se esvaziaram dos seus moradores, meus pais compreenderam não existir mais futuro no campo. Largaram o plantio de algodão, os criatórios de gado, as lavouras, e tomaram para si a tarefa de iniciar os filhos numa outra vida. No que dependesse deles, todos nós frequentaríamos a universidade. Sábia escolha do nosso pai, um homem que aprendeu a ler sozinho e atravessou noites brigando com os enigmas do português e da aritmética. Por algum mistério que nunca desvendei, os livros eram objetos de fetiche na família, prestando-se verdadeiro culto aos tios letrados, homens sábios e faladores.

Foi meu pai quem me acompanhou até a garagem do ônibus, pois não existia rodoviária no Crato. Caminhava ao meu lado, solene e silencioso. Um carregador transportava na cabeça minha parca mudança: uma mala de couro e uma caixa de papelão amarrada com cordas de barbante. A mais franciscana pobreza. Eu não enxergava nada à minha frente, os olhos cegos de lágrimas. Lembrei uma história que minha avó me contava, a de três irmãos que abandonam o lar em busca de fortuna. A todos eles o pai perguntou na hora da despedida: – Você prefere muito dinheiro e minha maldição ou pouco dinheiro e minha bênção? Apenas o mais novo escolheu a bênção e pouco dinheiro, alcançando sucesso.

Eu não podia me despedir de meu pai sem um adeus e sem pedir a bênção. Precisava ouvir de seus lábios a fórmula protetora do “Deus te abençoe”. Atravessava a cidade a pé, com a sensação de que me empurravam para o desterro. Nunca um trajeto me pareceu tão longo. Chegamos. O carregador instalou as bagagens no ônibus, recebeu o pagamento e deixou-nos sozinhos com meia hora de espera e constrangimento. Foi uma eternidade. Meu pai apertou minha mão, o máximo de afeto permitido entre nós, não me olhou, de modo que nunca soube o que sentiu naquela tarde. Na família, não existiam trocas de afagos e confidências, apesar dos fortes vínculos que nos uniam. Apertei a mão dele, e consegui pedir a bênção sem chorar. Ele me abençoou e parti sozinho. Sozinho, chorei horas seguidas e tive a primeira de muitas consciências, a de que eu era senhor do meu pranto.

As velhas fórmulas caíram em desuso, já não se pede a bênção a ninguém. Ah! O poder mágico dessa invocação! Toda noite, antes de dormir, escutava os irmãos gritarem dos seus quartos, para o quarto dos pais: A bênção! Só calavam depois que ouviam o “Deus te abençoe”. As três palavras pareciam o pano que nossa mãe estendia sobre as redes, nos protegendo dos respingos da chuva, na casa de telha vã. A fórmula não se referia ao Deus de nenhuma instituição religiosa, era apenas uma graça pacificadora, um sonífero sem droga.

Chegaram os dias em que desprezei os costumes da família, virei o rosto para os velhos que cobravam o pedido de bênção, senti nojo das mãos descarnadas das tias, estendidas para que eu as beijasse. Morreu a geração de bisavôs, depois caíram os avôs e já começaram as baixas nos tios paternos. Quando não restarem vivos na fileira dos pais, assumirei a linha de frente. Todos estarão depois de mim, ninguém mais antes de mim para abençoar-me. Serei eu a abençoar.

Por esses dias, meu filho mais novo viajou para estudar na Inglaterra. Achei que minha história se repetia em condições diferentes e por uma estrada bem mais comprida. Conversei com ele sobre seus projetos para o futuro. Ajudei-o a comprar as passagens, o curso, o seguro saúde, a arrumar a mala. Levei-o ao aeroporto na companhia festiva dos amigos, da namorada, e dos irmãos. Minha mulher e eu éramos as únicas pessoas graves na comitiva.

Meu filho transpôs o portão de embarque, tudo estava certo, não faltava nada. De repente, ele voltou até junto de mim, me estendeu a mão e pediu: A bênção, pai! Pronunciei o “Deus te abençoe” e a ordem do mundo se refez, uma ordem em que se recompõem os elos com o passado, sem nenhuma culpa pelas formas que o presente assume. Não sei o que meu filho sentia, nem em que pensava quando me pediu a bênção. Talvez tenha lembrado a história dos três irmãos, a que minha avó me contava e contei para ele. Todas as experiências do homem são de algum modo análogas, está escrito no Eclesiastes, o livro em que aprendi a ler, ajudado por meu pai.

Ronaldo Correia de Brito é autor de Galiléia, publicado pela Alfaguara

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