Contam
os mais velhos que Iku, a morte, resolveu matar antes da hora todas as pessoas
do povoado. Para isso montou armadilhas terríveis. Aqueles que caiam nas
armadilhas eram levados por Iku.
Desesperados,
os homens e mulheres não conseguiam deter Iku de forma alguma. Todo dia alguém
caia em uma de suas armadilhas.
Eles
resolveram perguntar ao sábio Orunmilá sobre como deter Iku. Orunmilá consultou
Ifá, o oráculo, e disse:
-
Só os Ibejis podem deter Iku.
Muitos
se assustaram com a resposta do sábio. Os Ibejis, filhos gêmeos de Oxum, eram
crianças terrivelmente levadas. Não paravam de brincar. Como, todavia, Orunmilá
não errava, os adultos foram pedir aos Ibejis que parassem a Morte. As crianças
aceitaram a tarefa, com uma condição: se derrotassem Iku, queriam receber
presentes, doces e quiabos e ninguém poderia mais mandá-las parar de brincar. O
acordo foi feito.
Os
Ibejis foram para o caminho em que Iku fazia suas vítimas, seguidos também
irmãozinho menor, chamado Idowu.
Acontece
que os Ibejis tinham um tambor encantado. E foi com o tambor que um dos gêmeos
entrou no caminho onde Iku armara suas armadilhas. O outro, bem escondido,
seguia o irmão de pertinho. Idowu, muito curioso, ía um pouquinho mais atrás.
Quando
Iku ouviu o tambor, achou tão bonito que resolveu não matar o menino que
tocava. A Morte começou a dançar, cantar e bater palmas. Mal sabia Iku que o
tambor encantado enfeitiçava os corpos, que não conseguiam mais parar de
bailar.
Iku
dançava tanto, que não percebeu que os gêmeos trocavam de lugar, para que a
música continuasse sem parar. E dançava, dançava, dançava.
Iku
se sentiu esgotada, mas não conseguia parar de dançar. Até que implorou:
-
Pare de tocar esse tambor, que eu nao aguento mais. Por favor!
Os
Ibejis, então, propuseram um acordo. Se a Morte retirasse todas as armadilhas
do caminho, eles parariam de bater tambor. Iku aceitou a proposta e jurou que
só levaria alguém quando fosse realmente a hora.
Desta
maneira, os Ibejis derrotaram a Morte, salvaram o povoado, receberam doces,
brinquedos e carurus e passaram a ser reconhecidos como grandes Orixás.
Deixaram
ainda uma lição: tambores encantados e crianças brincando são capazes de salvar
o mundo.
Quando alguém vai embora (Cyro Monteiro e Dias da Cruz)
Quando alguém vai embora e não diz a razão
A saudade devora tudo do meu coração
Se errou pouco importa, puro engano talvez
Toda casa tem trinco e tem porta
Para um dia bater-se outra vez
A maré que enche e vaza
Deixa a praia descoberta
Vai-se um amor e vem outro
Nunca vi coisa tão certa
Não é só quem se deseja
Que nos dá felicidade
Por pior que a gente seja
Deixa sempre uma saudade
Naquela época
ainda não havia televisão; era o tempo das cadeiras nas calçadas e nos terraços
das casas, ao entardecer, que reunia as famílias, os vizinhos e os amigos para
prosear.
Na casa de minha
mãe esse era um costume antigo; desde quando morávamos na Praça dos Voluntários,
as rodas de conversa da d. Elisa juntavam amigos.
Minha mãe
enviuvou cedo e precisou enfrentar a situação com coragem para superar, junto
com seus dez filhos, as dificuldades advindas.
Todos nós
começamos a trabalhar bem jovens para ajudar nas despesas domésticas, que eram
controladas por ela com pulso firme.
Graças a ela sempre
tivemos muitas amizades nas vizinhanças de todos os locais onde moramos; era
uma época em que não havia grandes diferenças entre as classes sociais e era
natural convivermos com pessoas mais abastadas do que nós e que frequentavam as
“altas rodas”.
Um desses
amigos, o escritor Milton Dias, era frequentador assíduo da casa da “d. Elisa”
e, vários de seus contos foram inspirados nas histórias compartilhadas nesses
encontros. A amizade teve
início entre a minha mãe e a do Milton; ele era um escritor bastante conhecido,
seus contos eram publicados nos jornais; O Zé Milton como nós o chamávamos
tinha uma conversa brilhante, ele “enchia” a noite e era muito “requestado”
para jantares e festas dos “grã-finos”. No entanto, ele
dizia que se divertia nas nossas rodas de conversa e estava cansado de tantos
jantares e festas para os quais era convidado: não aguento mais tantos convites!
A última casa em
que mamãe morou tinha um terraço muito agradável, ao ar livre, que à tarde
ficava sob a sombra de um grande pé de sapoti.
Nesse local todas
as noites havia o ritual de levar as cadeiras para fora e esperar a chegada dos
amigos; além do Milton, participaram de muitas rodas de conversa o pintor
Floriano Martins que era um intelectual, o antropólogo e crítico de arte
Geraldo Markan, conhecido como Gegê, muito amigos de minha irmã Lúcia, o
jornalista Carlos D’Alge, o artista Zenon Barreto, além das nossas amigas mais
assíduas, as Carvalhedo, Cármen, Maria Luisa e sua prima Zilma.
Nas reuniões se
falava de tudo, política, religião e, principalmente assuntos do cotidiano,
sempre tratados com bom humor, nada de muita polêmica!
Não havia bebida alcoólica, minha mãe, muito religiosa, fazia essa restrição, era “boca seca”, apenas
um cafezinho e no máximo um suco de frutas; no entanto, as conversas eram muito
animadas.
Hoje, olhando
aqueles tempos com o que guardei na memória, me parece que a vida se passava
com menos pressa.
Com o passar dos
anos a casa foi ficando grande demais e insegura para as duas pessoas idosas que
lá residiam, mamãe e minha irmã Marina; então, a casa foi vendida e elas mudaram
para um apartamento menor onde minha mãe viveu até quase cem anos e sobreviveu
a muitos daqueles amigos que frequentaram sua casa.
As rodas de
conversa foram substituídas pela TV que tinha lugar de destaque na sala, no
entanto, permanecem na lembrança as conversas inteligentes e espirituosas
daquele grupo de pessoas que frequentava a casa da Rua Carlos Vasconcelos,
1438.
(História
narrada por Laís Barreira, aos 100 anos e transcrita por Vólia Barreira.)
Há muitas trajetórias percorridas para chegar Às Caravanas, e todas elas se cruzam.
Uma delas vai pelo desenvolvimento de sua obra, em especial de como o posicionamento político esteve presente nela. A obra de Chico Buarque permite muitas estruturações possíveis. Aqui vai uma, formada por duas pequenas e duas grandes fases.
A primeira e pequena fase é formada pelos três primeiros álbuns, tendo o quarto como transição. Têm em comum um universo bastante estrito e um tanto ingênuo de carnaval, malandragem, boemia, em canções como Juca, Olê olá e Tem mais samba. No quarto álbum, gravado já no exílio na Itália, a vida e a repressão chegam. Nele a semente da insatisfação plantada em Roda Viva se desenvolve em Agora Falando Sério, em que ele textualmente faz a mala e corre para não ver banda passar, renegando seu maior sucesso. E vai explodir em Construção.
A radicalidade tanto política quanto estética de Construção, com os arranjos de Rogério Duprat, inaugura sua segunda e mais prolífica fase, em que ele desenvolve tanto seu lirismo quanto sua atuação política. A parceria com Tom Jobim floresce, surgem as de Francis Hime e Edu Lobo, e ele coloca em alguns álbuns o título da canção que dá o tom de sua postura política naquele momento: Meus caros amigos, Almanaque. Sem contar projetos como Calabar, em que sua oposição ao regime é manifesta. Embora Chico sempre tenha sido um observador atento do mundo, neste período havia algo a combater que unificava discursos, e canções como Cálice e Apesar de Você tinham endereço certo. Então veio a redemocratização.
Pelas tabelas e Vai passar, do álbum de 1984, marcam a despedida de Chico de canções políticas num sentido convencional, já prenunciando a ênfase na crônica de costumes que viria a seguir. Os dois álbuns seguintes, de 1987 e 1989, iniciam temas que se desdobrariam adiante, como o sonho (em O Velho Francisco) e a substituição da visão macropolítica pelo olhar cuidadoso para a cidade e seus habitantes (Estação Derradeira), e que se tornam preponderantes a partir de
Paratodos. Este, com As cidades e Carioca, constituem uma trilogia informal, e seus títulos explicitam para onde Chico olha, com o foco fechando-se álbum a álbum. A partir daí, não se falará mais da luta contra um regime, pois o inimigo nem sempre é tão claro, mas por meio da crônica da cidade é possível enxergar talvez mais longe até do que quando se tratava de interpretar metáforas. Pois se é verdade que o monstro da lagoaultrapassa o significado oculto de se referir a Médici e ganha novas leituras que lhe garantem atualidade, assim também a visão de Chico sobre o subúrbio carioca ou sobre uma imigrante ilegal nos EUA em Iracema voou dizem muitíssimo sobre os dias que vivemos, assim como o que nos trouxe até aqui.
As Caravanas é o exercício deste olhar em ponto extremo. Chico traça um retrato acurado da sociedade brasileira por meio do microcosmo específico da praia carioca. Desnecessário desenvolver o tema da praia como protótipo da democracia racial e da convivência entre classes, mito derrubado por uma divisão informal mas bastante firme entre postos e points. E é quando este limites são rompidos que os conflitos sociais (não só) brasileiros se veem representados com uma nitidez impressionante, e é quase natural que Chico a eleja o palco da dramaturgia de sua canção. Se em Carioca Chico cantou o arco de um dia na Zona Sul e em Subúrbio cantou o lado para o qual o Cristo Redentor dá as costas, As caravanas é a justaposição destes dois universos e o retrato da tensão entre eles, a ponto de explodir.
Um segundo caminho que leva Às caravanas passa pelo desenvolvimento da canção na obra de Chico, da discussão de seus caminhos e de seu encontro com o rap. Começando pela famosa entrevista de 2004 em que Chico, quase de passagem, aventa a possibilidade de fim do gênero composicional da canção como o conhecemos, levado de roldão por um fenômeno como o rap, que, na visão de Chico, de certa forma seria uma negação da canção (trato deste assunto detidamente analisando o rap em três artigos, aqui, aqui e aqui.
Adiante, em 2011, o rapper Criolo gravou informalmente uma versão de Cálice, de Chico e Gilberto Gil, em que atualizava o tema da repressão da ditadura para as quebradas paulistanas. Chico compôs uma resposta em rap e a cantou em seu show.
O namoro de Chico com o rap aprofundou-se em Subúrbio, quando ele o cita nominalmente outra vez, e em sua gravação de Ode aos ratos. Esta, oriunda do musical Cambaio, dele e de Edu Lobo, recebe cinco anos depois um adendo que baila entre o rap e o repente, com a melodia passando da linha reta ao modalismo nordestino, e simulações de scratch/remixagem na repetição de sílabas das palavras.
Porém, há um duplo aspecto a notar nesta aproximação entre o cancionista e o estilo que ele próprio considerou em algum momento que mataria a forma a que ele se consagrou. Chico flerta com o rap, sem almejar sequer fazer um rap, a não ser de brincadeira na resposta a Criolo. Em vez disso, ele tem o cuidado constante de preservar no seu discurso a indicação de seu lugar de fala. Chico não é o mané tentando se passar por malandro, nem o branco da zona sul que coloca o boné para trás e se declara MC. Sua persona artística, construída ao longo de décadas, não permite isto, nem ele tem esta intenção. Se os tropicalistas Caetano, Gil ou Tom Zé fizerem o mesmo, trarão significações diferentes, pelos diálogos diversos que estabeleceram com estes e outros estilos. Com Chico, a relação é quase formal, e isto por escolha dele próprio, pelas escolhas feitas por ele ao longo de sua carreira.
Pois Chico é fundamentalmente o continuador das conquistas da MPB, que conjugou a modernização não apenas harmônica da bossa-nova com a miríade de manifestações populares brasileiras, elaborando um repertório de procedimentos estéticos e técnicos para este encontro se dar em frevos, baiões, ranchos, além do samba que lhe serviu de fundamento. Chico é filho deste movimento, e não à toa afirma que hoje, depois da morte de Tom Jobim, sente sua música ainda mais presente em sua composição, e tudo o que faz, faz como se fosse para mostrar a Tom.
Em outras palavras, Chico sabe-se representante de uma vertente artística que tem uma identificação social e histórica específica. Seu ponto de vista não será o do marginalizado urbano, e mesmo quando utilizado o recurso do eu lirico deslocado, algo recorrente em sua obra, ele servirá para estabelecer em seu discurso um outro discurso que é o do autor, ou mais propriamente da obra em si. Então, quando em Bye, bye Brasil o protagonista da canção está telefonando de um orelhão em algum lugar do Brasil profundo e narra suas aventuras e desventuras de forma entrecortada, o que temos não é algo como a apropriação do lugar de fala de uma pessoa tão distante do universo pessoal de Chico, e sim a narração de algo que transcende à própria narrativa. O que interessa fundamental ou especificamente em Bye, bye Brasil não é se o eu lírico tem tesão é no mar ou está a fim de encarar um siri, mas o retrato conjunto de um país gigante e em transformação que ele nos traz.
Assim, em Subúrbio Chico estabelece uma conversação com a Zona Norte carioca, evocando seus bairros à maneira do rap, mas sem afirmar-se de lá como os rappers fazem – aliás, o mote da letra se inicia justamente na palavra lá, indicativa deste distanciamento. Em Ode aos ratos, o narrador não se confunde com sua descrição, antes há subentendido um espanto aliado à consternação no reconhecimento do semelhante, filho de Deus, meu irmão na criatura retratada, como o passante não reconhece no pedinte ou no pivete a humanidade, desumanizando-se ele também. E nAs Caravanas, Chico como que descreve as cenas que pode ter visto da janela de seu apartamento da Zona Sul, levando avante a crônica desde desreconhecimento.
Trata-se portanto de um posicionamento simultaneamente ético e estético. Pois Chico não tem interesse em fazer um rap por saber que não o faria com propriedade, mas tem interesse em colocar sua tradição cancioneira em contato com esta nova tradição que surge. E o caminho que ele escolhe é o da técnica, que permite este diálogo. Na Ode aos ratos vai pelo caminho já conhecido do repente, desbravado e utilizado pela MPB historicamente, tendo já incorporada sua influência, pelas similaridades entre este canto/improviso rimado e o rap. E o paralelo traçado se desdobra também em significados – pois afinal, nas grandes metrópoles do país, o nordestino frequentemente se confunde com o marginalizado retratado metaforicamente aqui.
Assim também, em Subúrbio, a melodia base varia no intervalo de tom, aproximando-se da entonação falada, para assumir a tensão da linha reta no verso fala na língua do rap. E nAs caravanas Chico como que dá outro passo adiante, reduzindo o intervalo inicial da melodia ao semitom. As Caravanas parte do intervalo entre a terça maior e a quarta do acorde da tônica para abusar de cromatismos ao longo de toda sua melodia. Chico vai até a fronteira possível do microtonalismo brilhantemente apontado por Tom Zé ao analisar o funk Atoladinha (mas aplicável ao gênero como um todo), mas não a ultrapassa, antes acena para o outro lado.
(Este debate em que o lugar de fala tem uma importância fundamental vai repercutir também na discussão candente que teve lugar sobre Tua cantiga, acusada de machismo. Chico já usou abundantemente o recurso do eu lírico descolado do discurso da canção como forma de criar tensão, com a canção como um todo afirmando o contrário do que seu personagem diz – dois exemplos clássicos são o Fado tropical e Mulheres de Atenas. Porém, em muitas outras o eu lírico se confunde com o autor, em especial suas canções de alcance político ou social, mas não só. Afinal, ninguém vai acreditar na desculpa esfarrapada que Chico deu à censura de que Apesar de você foi escrita para uma mulher muito mandona. Sem voltar ao assunto de Tua cantiga, cumpre apenas lembrar que a simples afirmação trata-se do eu lírico não é suficiente para estabelecer a mensagem de uma obra artística, seja ou não canção).
O que nos leva a um terceiro possível itinerário para chegar Às Caravanas, que são suas referências. Duas principais delas são apontadas no release do álbum, escrito pelo jornalista Hugo Sukman: o romance O estrangeiro, de Camus, e o tema Caravan, de Duke Ellington.
O estrangeiro conta a história de Meursault, francês radicado na Argélia (colônia francesa à época) e que mata um árabe, é preso, julgado e condenado. O crime ocorre numa praia, num dia de sol escaldante, e Meursault afirma que o sol e o calor insuportáveis o induziram a fazer o que fez.
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
Diz Chico no refrão dAs Caravanas, que contrasta fortemente com o restante da letra. Até então virtualmente todas as notas da melodia tiveram a mesma duração de colcheia, estabelecendo uma rítmica aproximada à do rap – pode-se dizer, um flow. Aqui, ao contrário, as sílabas são escandidas languidamente, acentuando seu efeito, quase como o delírio que acometeu Meursault. Como nas teorias deterministas que afirmavam ser impossível o desenvolvimento de uma civilização no clima tropical, o estrangeiro se vê ofuscado pela luz e perde sua racionalidade. No entanto, no romance de Camus só os estrangeiros têm voz e nome. Em 2016, o escritor argelino Kamel Daoud decidiu reescrever O estrangeiro, só que agora sob o ponto de vista dos muçulmanos, contando seu lado da história.
A referência dO estrangeiro aponta em múltiplas direções. Uma das principais é a de uma certa indiferença com relação ao outro, uma insensibilização ao diferente, com viés simultaneamente pessoal e social. Para além da relação com o romance, é possível traçar também um paralelo com a canção de mesmo nome de 1987, de Caetano Veloso. Ambas têm bastante em comum, em que pesem formas e estética muito diferentes. Mas passam-se as duas numa praia, e tratam, em última instância, do discurso fascista ganhando peso e importância (além de uma certa atmosfera de sonho). Porém, enquanto Caetano é confrontado diretamente com o discurso explícito (riscar os índios, nada esperar dos pretos), Chico assiste este pensamento nefasto tomar forma e ação.
E outro efeito da referência está na universalização do microcosmo, reforçado por Chico de diversas formas, a começar pela menção ao azul do mar de Istambul, outra capital árabe (e berço da civilização), logo ao pintar o cenário da narrativa. Chico, por assim dizer, internacionaliza o conflito praieiro em diversas instâncias, geográficas ao associar a turba do Jacarezinho a muçulmanos indo de 474 para o Jardim de Alah, histórica ao trocar caravana por caravela e rimar favela e Benguela. Chico diz implicitamente o que o Rappa já disse com todas as letras: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Não só o sertão é do tamanho do mundo, mas a praia também pode ser.
Outro ponto a ser notado é o misto de medo, raiva (sua filha, diz ele adiante) e fascínio carregado de sexualidade da gente ordeira e virtuosa pelo populacho que chega. Os versos
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
são carregados de significação psicanalítica evidente, os falos simultaneamente apavoram e atraem. E em seguida, temos o magistral verso Com negros torsos nus deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa. A palavra nus pode ser ouvida também nos, passando de adjetivo a pronome oblíquo e mudando o sentido da frase, graças à pausa entre este verso e o seguinte, que revela quem é deixado em polvorosa (palavra igualmente dúbia. Horrorizados? Excitados?). Embora a letra oficial seja nus, com u, a escuta provisória do nos, com o, persiste por um segundo e meio antes de ser rechaçada pela continuidade da canção. Como se Chico subrepticiamente, por um instante apenas, deixasse de ser apenas o cronista, o estrangeiro que assiste da janela e se incluísse entre a gente ordeira e virtuosa, compartilhando a atração e repulsa pela horda do Arará
Mas o golpe de mestre de Chico, talvez não esteja na letra primorosa dAs Caravanas, e sim no campo especificamente musical. O tema musical dAs Caravanas deriva do de Caravan, de Duke Ellington.
Duke, negro, compõe um tema com sotaque árabe, que se torna um clássico do jazz – jazz ele mesmo nascido da cultura negra. A inspiração árabe na escala utilizada por Duke Ellington em Caravan traz à lembrança a microtonalidade melismática típica da música árabe, de um tipo bem diferente da do rap/funk. Porém, o desenho melódico escolhido por Chico, num jogo de alusões tanto a uma quanto a outra influência, consegue se equillibrar entre eles sem perder sua característica própria, numa emulação sem imitação. Os cromatismos dAs Caravanas acenam então numa tríplice fronteira.
Somente o contraste entre a citação melódica de Caravan e a temática da canção (com o empréstimo até mesmo do nome) poderia ser suficientemente claro. Mas Chico resolve tornar tudo mais explícito, e convoca Rafael Mike, do Dream Team do Passinho, para fazer beat box, a percussão vocal de tamborzão, ritmo do funk carioca. Então, simultâneo ao encontro explosivo entre Zonas sul e norte, Ocidente e Islã, ocorre também o encontro entre canção e rap, e entre Sir Duke e o funk carioca. Porém, ao contrário do choque civilizacional onde preconceitos afloram, da tensão e o conflito que são descritos em vários níveis de linguagem nAs Caravanas, este encontro, o único que acontece no âmbito estritamente musical, se resolve.
É como se Chico pretendesse desmontar antecipadamente a narrativa racista que é aplicada à cultura do rap e principalmente do funk, trazendo-o para dentro da canção e tirando desta um pouco de sua característica de crônica distanciada. A galera do Jacarezinho não se limita a invadir a praia, mas comparece também na música que narra sua invasão, e, ao contrário do romance de Camus, aqui ela tem nome e voz, e se afirma tão negra e tão digna de respeito quanto o jazz de Duke Ellington, parte da mesma herança.
As caravanas é um exemplo de como uma obra de arte pode sintetizar tantos ou mais significados que um tratado, e também de como pode conter um posicionamento político vigoroso sem perder um miligrama de sua densidade. Chico foi panfletário quando considerou haver necessidade. Hoje sua lírica é tão ou mais altissonante, e a maturidade a fez ganhar ainda em complexidade, sem a necessidade de palavras de ordem, mas com uma sutileza que mantém sua enorme capacidade de impactar. As caravanas é um retrato de nosso tempo por conseguir representar algumas de nossas inúmeras divisões, enquanto dentro de si realiza as comunhões destas mesmas forças que se digladiam. Que povos, classes, raças, gêneros ou habitantes da mesma cidade tenham a capacidade de se reconhecerem entre si, assim como tantas trajetórias diversas se encontraram para criar uma canção, é tudo que poderíamos desejar.
Com o acompanhamento do "Regional do Caçulinha", do álbum "Eternamente Samba" (1966); sêlo Polydor
Músicas:
1) Pois é (Ataulfo Alves)
2) A Morena Sou Eu (Mirabeau e Milton de Oliveira)
3) Sai do Meu Caminho (Ataulfo Alves)
4) Conte o Caso Direito (Valdenir e Nilton Carudo)
5) Duro com Duro (Ataulfo Alves)
6) O Vento Que Venta Lá (Ataulfo Alves)
7) Na Ginga do Samba (Ataulfo Alves)
"Dama de Espadas", de Paulinho da Viola. do album "Bebadosamba", 1996.
Violão - Paulinho da Viola
Violão - César Faria
Piano -Cristóvão Bastos
Cavaquinho - Luciana Rabello
Ganzá - Celsinho Silva
Clarinete - Dirceu Leite
Flute - Carlos Malta
Drums - Hercules
Arranjo -Cristóvão Bastos
Cresci em uma cidade que sacraliza o profano e, ao mesmo tempo, profana o sagrado
O escritor Marques Rebelo, cronista dos saberes das ruas, dizia que uma cidade é feita de várias cidades. A sentença é um golaço que fala do Rio de Janeiro como uma segunda do Marçal numa primeira do Bide ou uma desaforada da dupla Bosco e Blanc. Por isso mesmo acho bom esclarecer, para abrir a gira neste espaço, de qual dos rios eu venho.
Cresci em uma cidade que sacraliza o profano e, ao mesmo tempo, profana o sagrado. Aprendi a rezar para os deuses sem deus nas arquibancadas de cimento do Maracanã, ao lado do pai e do avô, como um menino achando que o sabor da vida era o da laranja-lima que comprávamos na entrada do estádio e chupávamos subindo a rampa; aquela que levava ao túnel. Atravessado na corrida, dele se descortinava o umbigo do mundo entre duas traves e uma marquise mais alta que o céu incendiado.
Sou de um Rio em que o cantor de tangos Carlos Gardel baixava em um centro espírita na Fazenda da Bica, entre Quintino e Cascadura. Nas sessões em que descia, tendo como cavalo uma manicure de um salão cheio dos salamaleques e elegâncias tijucanas, Gardel cantava tangos em lunfardo, a fala cheia de gírias do porto de Buenos Aires. Acompanhando Gardel no bandoneon, baixava o espírito de um índio tupinambá que, segundo o próprio, saiu no cacete com os portugueses no século XVI, durante a batalha de Uruçumirim. O índio aprendeu a tocar bandoneon depois de morto e fez com Gardel, que meu avô que não falava espanhol só chamava de El Zorzal Criollo, uma dupla da pesada.
A minha cidade é a das barbearias de rua, botequins vagabundos, açougues e quitandas de esquina. É bem distante, portanto, da onda mais recente das barbearias descoladas dos shoppings, dos bares de grife, das butiques de carne e dos hortifrutis que mais parecem enfermarias de frutas. Um Rio das sociabilidades meninas dos debicadores nas alamedas dos cemitérios suburbanos em tempo de pipa, dos pregoeiros da Central, dos torneios de sueca nas praças, dos artistas anônimos do Japeri, dos boiadeiros cavalgadores dos ventos e de certo Zé de terno de linho e chapéu panamá; malandro que saiu das Alagoas e chegou firmando ponto no Largo da Lapa, no arrepiado das capoeiras.
Nos últimos anos comecei a amadurecer dois princípios que hoje são a base do que escrevo. O primeiro é o de que os temas que me interessam são vinculados aos processos de invenção e reconstrução de laços de sociabilidade no campo das sapiências das ruas: sambas, escolas de samba, carnavais, terreiros, pequenos comércios, quermesses de igrejas, saberes da trívia e os modos de criação da vida de crianças, mulheres e homens comuns: aquilo que podemos definir como cultura.
O segundo é o de que recebi da minha criação uma herança da qual não quero abrir mão. Nasci dentro de um terreiro, neto de uma mãe de santo versada nos segredos da encantaria que rezava pra tirar quebranto com guiné, saião e fedegoso. Fui batizado nos conformes da curimba, protegido pelo caboclo Peri e oferecido aos cuidados da Dindinha Lua num terreiro de Nova Iguaçu. Corri descalço nas ruas das Baixada Fluminense — numa delas meu umbigo está enterrado —, morei em Laranjeiras, bairro querido, joguei bola no Jardim Clarice, brinquei de pique-esconde no Valqueire, frequentei matinês nos cinemas de Botafogo e me apaixonei pela moça que se transformava na Konga, a mulher gorila do Parque Shangai. Nunca fui de praia. Gosto do sol, mas ele me detesta.
No meio do fuzuê, entre sons de tiro, ladainhas, aleluias, sambas, tambores, tombos, tapas, ruídos de buzinas, espasmos de amor e ódio, flores de feira e punhais afiados, vou seguindo em um território em disputa, com a certeza de que o tempero da cidade é o sal da memória dos dias longos e da noite grande. A lufada de esperança vaga que tenho é porque continuo apostando que nos deslocamentos e nas frestas — entre as gigantescas torres empresariais viradas em esqueletos de concreto, as ruínas de arenas multiuso e as vielas de lama e sangue — os couros percutidos continuarão cantando a vitória da vida sobre a morte no terreiro grande da Guanabara.
A nossa história afirma isso em cada gargalhada zombeteira dos exus, no desengasgo de São Brás e nos três pulinhos de São Longuinho. Somos filhos das sonoridades insinuantes e dos corpos em transe; crias dos gritos, cantos e acalantos que saem dos terreiros entocados, das brechas do fim do mundo, das tocas de bicho-homem, das saias das pombagiras, da lua de Luanda, e da terra que nos pariu e nos ensinou que a vida, feito o samba do Hermínio e do Paulinho pra Mangueira, não é só isso que se vê. Tem que ser um pouco mais.
Quando fiz 15 anos minha mãe, embora tivesse “poucas
posses”, fez uma festinha para comemorar meu aniversário.
E no dia da minha festa de 15 anos conheci Américo.
Eu
já o conhecia “de vista” das retretas da Praça do Ferreira; ele e os amigos
tinham um local de encontro, na esquina da Rua Guilherme Rocha ao lado do Hotel
Excelsior; uma parte do grupo ficava perto da parede eoutra na ponta da calçada, formando um “corredor polonês” de modo
a obrigar as garotas a passar no meio deles; quando passávamos eles diziam
piadinhas, o que me deixava meio constrangida.
Outra
vez, quando voltava pra casa com uma amiga ele e um dos amigos nos seguiram até
minha casa, dizendo “chistes” espirituosos; até então, nunca havia passado
disso.
Ele
não foi convidado para o aniversário e entrou como penetra, como se diz hoje,
porque era amigo do vizinho que namorava minha irmã.
Levou-me
de presente um álbum da revista CINEARTE, com fotos dos meus artistas de cinema
favoritos e, como eu era louca por cinema, o presente me encantou. Eu costumo
dizer que ele “me ganhou” com o álbum da CINEARTE.
Naquele
dia, no auge da minha juventude, nunca poderia imaginar que aquele rapaz que me
olhava com olhos de um intenso azul, com jeito de galã de cinema seria meu
marido e viveria comigo até o fim da vida dele.
O
namoro durou oito anos!
Quando
o conheci ele havia sofrido, recentemente, um sério acidente; descendo de um
ônibus em movimento ele acabou sendo atropelado por um bonde que passava na
mesma hora. Sua perna quebrou-se em várias partes e só não foi amputada porque
o pai dele não permitiu. O médico que o operou alertou que, por alguns meses
ele não poderia pisar no chão e, por mais algum tempo teria que andar de
muletas.
Porém,
ele era muito vaidoso e não seguiu a recomendação médica; andava de bengala e
acabou ficando com uma perna mais curta que a outra.
Logo ele começou a frequentar nossa
casa, porque minha família já conhecia a família Barreira e minha mãe tinha
amizade com uma tia dele; meu pai também gostava dele e às vezes o convidava
para almoçar com a gente; isso foi estreitando laços e fortalecendo o namoro.
Quando
começamos a namorar ele tinha 17 anos, mas já estava na faculdade de direito o que
representava um status maior do que namorar um aluno do colégio militar.
Além
disso, já começava a demonstrar sua liderança e seu brilhantismo como orador,
que sempre foram suas grandes qualidades e um sério defeito: era namorador.
Por
causa desse defeito, terminamos várias vezes o namoro. Nesses intervalos ele
namorava outras meninas, mas sempre me procurava pedindo para voltarmos e
prometendo mudar; como eu era tímida nunca iria pedir pra voltar o namoro.
Passados oito anos de idas e vindas, me
casei com um homem que, durante sua vida foi um político brilhante; tivemos
sete filhos e durante 53 anos de vida em comum compartilhamos momentos felizes,
tristezas, mágoas e muito desassossego, principalmente por causa da sua ideologia
política, de sua militância partidária de esquerda e do seu destemor que lhe acarretaram
perseguições e sua prisão no golpe militar de 1964.
(História
narrada por Laís Barreira, aos 100 anos e transcrita por Vólia Barreira.)