Por Luiz Antonio Simas
Cresci em uma cidade que sacraliza o profano e, ao mesmo tempo, profana o sagrado
O escritor Marques Rebelo, cronista dos saberes das ruas, dizia que uma cidade é feita de várias cidades. A sentença é um golaço que fala do Rio de Janeiro como uma segunda do Marçal numa primeira do Bide ou uma desaforada da dupla Bosco e Blanc. Por isso mesmo acho bom esclarecer, para abrir a gira neste espaço, de qual dos rios eu venho.
Cresci em uma cidade que sacraliza o profano e, ao mesmo tempo, profana o sagrado. Aprendi a rezar para os deuses sem deus nas arquibancadas de cimento do Maracanã, ao lado do pai e do avô, como um menino achando que o sabor da vida era o da laranja-lima que comprávamos na entrada do estádio e chupávamos subindo a rampa; aquela que levava ao túnel. Atravessado na corrida, dele se descortinava o umbigo do mundo entre duas traves e uma marquise mais alta que o céu incendiado.
Sou de um Rio em que o cantor de tangos Carlos Gardel baixava em um centro espírita na Fazenda da Bica, entre Quintino e Cascadura. Nas sessões em que descia, tendo como cavalo uma manicure de um salão cheio dos salamaleques e elegâncias tijucanas, Gardel cantava tangos em lunfardo, a fala cheia de gírias do porto de Buenos Aires. Acompanhando Gardel no bandoneon, baixava o espírito de um índio tupinambá que, segundo o próprio, saiu no cacete com os portugueses no século XVI, durante a batalha de Uruçumirim. O índio aprendeu a tocar bandoneon depois de morto e fez com Gardel, que meu avô que não falava espanhol só chamava de El Zorzal Criollo, uma dupla da pesada.
A minha cidade é a das barbearias de rua, botequins vagabundos, açougues e quitandas de esquina. É bem distante, portanto, da onda mais recente das barbearias descoladas dos shoppings, dos bares de grife, das butiques de carne e dos hortifrutis que mais parecem enfermarias de frutas. Um Rio das sociabilidades meninas dos debicadores nas alamedas dos cemitérios suburbanos em tempo de pipa, dos pregoeiros da Central, dos torneios de sueca nas praças, dos artistas anônimos do Japeri, dos boiadeiros cavalgadores dos ventos e de certo Zé de terno de linho e chapéu panamá; malandro que saiu das Alagoas e chegou firmando ponto no Largo da Lapa, no arrepiado das capoeiras.
Nos últimos anos comecei a amadurecer dois princípios que hoje são a base do que escrevo. O primeiro é o de que os temas que me interessam são vinculados aos processos de invenção e reconstrução de laços de sociabilidade no campo das sapiências das ruas: sambas, escolas de samba, carnavais, terreiros, pequenos comércios, quermesses de igrejas, saberes da trívia e os modos de criação da vida de crianças, mulheres e homens comuns: aquilo que podemos definir como cultura.
O segundo é o de que recebi da minha criação uma herança da qual não quero abrir mão. Nasci dentro de um terreiro, neto de uma mãe de santo versada nos segredos da encantaria que rezava pra tirar quebranto com guiné, saião e fedegoso. Fui batizado nos conformes da curimba, protegido pelo caboclo Peri e oferecido aos cuidados da Dindinha Lua num terreiro de Nova Iguaçu. Corri descalço nas ruas das Baixada Fluminense — numa delas meu umbigo está enterrado —, morei em Laranjeiras, bairro querido, joguei bola no Jardim Clarice, brinquei de pique-esconde no Valqueire, frequentei matinês nos cinemas de Botafogo e me apaixonei pela moça que se transformava na Konga, a mulher gorila do Parque Shangai. Nunca fui de praia. Gosto do sol, mas ele me detesta.
No meio do fuzuê, entre sons de tiro, ladainhas, aleluias, sambas, tambores, tombos, tapas, ruídos de buzinas, espasmos de amor e ódio, flores de feira e punhais afiados, vou seguindo em um território em disputa, com a certeza de que o tempero da cidade é o sal da memória dos dias longos e da noite grande. A lufada de esperança vaga que tenho é porque continuo apostando que nos deslocamentos e nas frestas — entre as gigantescas torres empresariais viradas em esqueletos de concreto, as ruínas de arenas multiuso e as vielas de lama e sangue — os couros percutidos continuarão cantando a vitória da vida sobre a morte no terreiro grande da Guanabara.
A nossa história afirma isso em cada gargalhada zombeteira dos exus, no desengasgo de São Brás e nos três pulinhos de São Longuinho. Somos filhos das sonoridades insinuantes e dos corpos em transe; crias dos gritos, cantos e acalantos que saem dos terreiros entocados, das brechas do fim do mundo, das tocas de bicho-homem, das saias das pombagiras, da lua de Luanda, e da terra que nos pariu e nos ensinou que a vida, feito o samba do Hermínio e do Paulinho pra Mangueira, não é só isso que se vê. Tem que ser um pouco mais.
Leia mais: https://oglobo.globo.com/cultura/nas-frestas-do-mundo-21793788#ixzz4sU50FB8f
stest
2 comentários:
Linda! Tem outra do Paulinho que fala na Dama de Ouro. Não sei qual a mais bonita.
bjs
Regina Brandão
Mesmo que as vezes sejam pedantes, é muito linda a forma com que os cariocas são autorreferentes. Nos levam facilmente a um passeio foda pela cidade deles.
Muita coisa que se escreve por aqui eu paro de ler quando citam a tal da "loura desposada do sol".
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