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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

"foras de ordem" em passeata no Mackenzie

Matéria de Pedro Alexandre Sanches, publicada 
 
 
 
Em passeata no Mackenzie, “foras-da-ordem” pedem o direito de existir
 


Acostumada a 14 anos de disputa entre festa e militância nas chamadas paradas gays de São Paulo, a comunidade LGBT local teve de se deparar com o novo e com o inesperado no final da tarde de ontem. Começou como uma manifestação aparentemente espontânea e sem direção, convocada via internet por estudantes de várias faculdades da capital, que gritava palavras de ordem contra a homofobia em frente aos portões da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na confluência histórica entre as ruas Itambé e Maria Antônia.

Algumas poucas drag queens faziam o corriqueiro para arrancar os risos e a atenção do público, mas esse não era o dia delas, nem de garotos musculosos vestidos (ou despidos) como go-go boys. Como numa conjunção maluca entre paradas de orgulho gay e diversidade sexual, de um lado, e marchas em louvor de Deus e da família, do outro, o álcool e as drogas não protagonizavam nenhuma parte dessa manifestação. Ambulantes não lucravam com a pequena multidão que se aglomerava atrapalhando o trânsito. Não havia bandeiras de partidos políticos. Os slogans eram inventados na hora. Não era domingo nem feriado, era dia de semana, horário de expediente.

Representantes de instituições evangélicas, presbiterianas e um padre católico discursavam no asfalto – CONTRA a homofobia. O microfone, de baixa potência, era entregue a quem mais quisesse se pronunciar. Como lembrava alguém, “isto aqui não é uma guerra contra a religião”, mas também “ninguém pode dizer que alguém não deve existir”.

Nós, manifestantes, tínhamos de aprender que o inimigo era um sentimento, uma fobia, e não um grupo religioso, uma escola conservadora, um partido de direita ou um preconceito que os outros possuem, mas nós não possuímos. Acostumada com a própria máscara, a mais espalhafatosa das drags ia aos poucos percebendo que algo estava fora da ordem naquela falta de ordem – e, como quem não quer nada, ensaiava cobrir a peruca platinada de Marilyn Monroe por baixo de uma bandeira do arco-íris.

Desguarnecidos de anestésicos como batidas tecno e substâncias químicas, os manifestantes em marcha desordenada se deparavam com a hostilidade aberta vinda de trás das paredes dos prédios da Maria Antônia. Ovos “caíam” das janelas, rapazes sem camisa gritavam “sai da minha rua!” protegidos por gestos obscenos. Desacostumados com o confronto direto, alguns manifestantes respondiam às provocações com provocações, evidenciando que o monstro de mil caras da incompreensão mora dos dois lados do muro.

A propósito de muros, o Mackenzie cerrou seus portões enquanto a manifestação progredia. Em imagem muito simbólica, ali ninguém entrava, dali ninguém saía. Gente de dentro e gente de fora se observava mutuamente, como se bichos de zoológico fossem os que estavam do outro lado das grades. Alunos da escola se enfileiravam quase em cima do muro (mas do lado de dentro) para ver a banda passar. Uma garota de dentro acenava e mandava beijos para um amigo do lado de fora. Desgovernada, a marcha se arrastava que nem cobra pelo chão, Itambé, Maria Antônia, Caio Prado, Augusta acima, Paulista abaixo, até quase o Paraíso.
Na rua Augusta, a dragreapareceu após demorado sumiço – surgiu na sacada de uma janela, rodando uma sombrinha de frevo com as cores do arco-íris, como se reconhecesse, agora sim, a linguagem de parada a que se habituou. “Isso é que é parada!”, a pequena multidão gritava em coro, confundindo passeata com parada, mas explicitando enfim a insatisfação e a discordância com os rumos que vinham sendo tomados até aqui.

Poucos negros marchavam nessa louca subversão de “tradição, família e propriedade” – tradição gay, família lésbica, propriedade transexual, heterossexuais permitidos e bem-vindos à nova casa santa. Um dos poucos negros, muito jovem, lançou-se à passeata em plena avenida Paulista, hostilizando, solitário e talvez algo suicida, a multidão que queria o contrário do que ele queria.

Foi cercado e logo apelidado de “homofóbico” por quem talvez acalente silenciosa e intimamente seus próprios sentimentos racistas, misóginos, talvez até homofóbicos. Poderia ter sido agredido, como foram os jovens homossexuais outro dia mesmo, naquele mesmo cenário. A Polícia Militar interveio, imobilizando um rapaz negro, como sempre costuma fazer – mas ao mesmo tempo imobilizando um jovem (talvez) homofóbico, como raramente costuma fazer. O conflito foi abortado, aparentemente sem violência – de modo geral, a PM e seus soldados armados, amados ou não, tiveram desempenho exemplar em garantir a ordem e a paz de um ato que era e/ou devia ser antiviolência, antiplayboys atiradores de ovos, antimáfias “douradas”.

O mote central, evidentemente, era a liberdade sexual. Mas subjacente a ele – debaixo das bombas, das bandeiras, das botas, das rosas, dos jardins, da lama e da cama –, estava outra reivindicação, até mais elementar, e bem vocalizada pelo estudante anônimo que afirmou que “ninguém pode dizer que alguém não deve existir”. Em tempo de ataques homofóbicos, ameaças xenófobas antinordestinos e muxoxos misóginos, os estudantes e seus seguidores queriam ser o antídoto. E descortinavam, em meio ao caos aparente, o lado mais bonito de São Paulo, aquele que a cidade hesita e demora, mas sempre acaba por desnudar. Muito jovens e ainda ensaiando colocar a boca no megafone, os convocadores da passeata pediam o mero e cândido direito de existir, só.

Embora chicos, caetanos, gilbertos e vandrés reverberassem pela passeata sem música, eram outros versos que não saíam um minuto sequer do ouvido interno deste manifestante. Foram proferidos há 25 anos pela hoje deputada Leci Brandão, mãe simbólica de moços como Mano Brown, Netinho de Paula, Seu Jorge, Mariana Aydar, Rappin’ Hood e Emicida e, ela própria, uma confluência de identidades de raça, gênero e sexualidade.

Dizem o seguinte:
“No serviço de alto-falante/ no morro do Pau da Bandeira/ quem avisa é o Zé do Caroço/ amanhã vai fazer alvoroço/ alertando a favela inteira/ ah, como eu queria que fosse em Mangueira/ que existisse outro Zé do Caroço/ pra dizer duma vez pra esse moço/ carnaval não é esse colosso/ nossa escola é raiz, é madeira/ mas é no morro do do Pau da Bandeira/ de uma Vila Isabel verdadeira/ que o Zé do Caroço trabalha/ que o Zé do Caroço batalha/ e que malha o preço da feira/ e na hora que a televisão brasileira/ distrai toda gente com sua novela/ é que o Zé põe a boca no mundo/ é que faz um discurso profundo/ ele quer ver o bem da favela/ está nascendo um novo líder/ no morro do Pau da Bandeira”.

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