O centenário de Vadico
Por Daniel Brazil - 01/11/2010
Alguns personagens acabaram sendo ofuscados, neste ano de centenários ilustres de mestres da mossa música. Osvaldo de Almeida Gogliano, o Vadico, pianista e compositor, é um desses. Nascido em 24/06/1910, dia de São João, o paulistano do Brás disputa com Ismael Silva o título de maior parceiro de Noel Rosa.
Vadico é exemplo perfeito do músico formado na era do rádio. Nascido em família musical, estudou harmonia e composição, escolhendo o piano como instrumento. Afinal, o mercado de trabalho era atraente, para quem abraçasse a música popular: cafés, bares, cinemas, teatros e rádios mantinham programas de música ao vivo, com músicos e arranjadores contratados.
Atento à escola de Sinhô, logo percebeu que o samba tinha espaço nas 88 teclas de seu instrumento, dividido com valsas, foxtrotes e marchinhas. Chegou a ganhar um concurso em São Paulo, com a marcha Isso Mesmo É que Eu Quero, mas não emplacou nas paradas.
Com 20 anos se mandou para o Rio, sonho de todo músico em ascensão. Ali estavam as grandes rádios, as gravadoras, os programas de auditório e, mais que tudo, os bambas que o jovem admirava. Em pouco tempo, batia ponto na Odeon, como pianista e orquestrador, contratado por Eduardo Souto.
Diz a lenda que foi este quem apresentou os dois jovens, Vadico e Noel. O paulista burilava uma melodia no piano, e Souto intuiu que aquela melodia sinuosa e caprichada precisava de um bom letrista. Em dois dias, nascia Feitio de Oração, primeira de uma série de onze composições que iriam levar a arte de Noel às alturas.
Vadico já tinha alguma coisa gravada, àquela altura. Francisco Alves registrouArranjei Outra (1930), Luiz Barbosa gravou Silêncio em 1931. Outro samba, Deixei de Ser Otário, foi trilha do filme Acabaram-se os Otários, de Luis de Barros (1929). Nada muito marcante, até o histórico encontro.
Dois rapazes de 22 anos, com vidas e estilos bem distintos, mas que fizeram tabelinhas dignas de Coutinho e Pelé. Como registram João Máximo e Carlos Didier, na biografia de Noel, “nada do que farão juntos é menos que bom. E quase tudo é mais que excelente”.
Francisco Alves e Castro Barbosa inauguraram a série de gravações de Feitio de Oração, que teve nas vozes femininas (de Aracy de Almeida e Marília Batista até Maria Bethania e Olivia Byington) sua maior consagração.
Poderiam fazer um samba mais bonito? A dupla Vadico & Noel Rosa ergueu as mangas e se debruçou sobre o desafio. E saiu Feitiço da Vila e a confessional Pra Que Mentir, obras primas absolutas. E os menos conhecidos, mas impecáveis,Provei, Só Pode Ser Você e Quantos Beijos. E pra quem pensou que a dupla só batia um bolão em sambas dor-de-cotovelo, arrebentaram a banca com Conversa de Botequim, Cem mil-réis e Tarzan, o Filho do Alfaiate. Até jingle publicitário fizeram juntos, pra arrecadar um troco (Marcha do Dragão).
Depois da morte de Noel, Vadico continuou seu trabalho de bastidores, tocando e arranjando. No final dos anos 30, partiu para os EUA, onde morou por 15 anos. Tocou com Carmen Miranda e o Bando da Lua. Participou de trilhas de filmes, como o famoso Alô, Amigos (1943), longa metragem de animação da Disney que lançou o personagem Zé Carioca.
Seu refinado senso melódico e harmônico o levou a compor peças instrumentais, de feição erudita. Mesmo assim, não abandonou a música popular, musicando versos de Aloysio de Oliveira, Vinicius de Moraes, David Nasser e Marino Pinto. Com esse último compôs sua canção favorita, Prece.
Nos anos 50 retornou para o Brasil, onde trabalhou como arranjador da gravadora Continental e da rádio Mayrink Veiga. No início da TV Rio, assumiu a área musical da emissora. Dizem que Vinicius pensou nele para compor um musical que estava ruminando, chamado Orfeu da Conceição. Mas aí, surgiu um certo Tom Jobim no caminho...
Vadico morreu em 1962, de infarto. Compositor inspirado, sua personalidade discreta fez com que brilhasse menos do que merecia. Foi um inovador do samba, precursor de novos caminhos. Certamente em 2010, nas muitas homenagens feitas a Noel Rosa, suas melodias emocionaram as platéias, e foi aclamado como maior parceiro do gênio. Ismael foi maior sozinho, não há dúvida. Foi um Tostão. Mas Vadico foi um Coutinho: formou a dupla perfeita com o boêmio da Vila Isabel. Aquela que será lembrada para sempre.
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