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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Mas não consegui fazer a leitura que todos fizeram.

Via Dora Moreira

Por Yan Boechat

Na quinta-feira eu cheguei em casa um pouco depois das 10:30 da noite. Cheguei excitado com o que havia acontecido nas cinco horas anteriores em São Paulo e certo de que a série de protestos iniciado na semana anterior atingira um novo estágio. Pela primeira vez eu vi, naquela noite, as pessoas enfrentando a polícia com paus, pedras e garrafas e se recusando simplesmente a aceitar as imposições das forças de repressão. Não estou me referindo a pequenas barricadas feitas de lixo ou mesmo a estratégia de dispersão e reagrupamento. Estou falando de embate, de ter coragem para chegar lá perto do choque com pedras e garrafas para mostrar que as bombas e as balas de borracha não eram o bastante para intimidá-los.

Mas não consegui fazer a leitura que todos fizeram. Eu sinceramente não cheguei em casa com a sensação de que a Polícia Militar havia passado dos limites, que estava sem controle ou mesmo agindo de uma forma diferente do que se esperava dela. Nos últimos dois dias fiquei aqui questionando minha capacidade como jornalista. Será que a notícia passou diante de mim encilhada em um cavalo branco e eu simplesmente não a vi? Será que estive nos lugares errados? Será que não rodei pela cidade como eu deveria ter rodado? Será, afinal de contas, que eu havia perdido a sensibilidade de perceber o que estava ocorrendo diante de mim?

Tenho feito essas perguntas desde sexta-feira, quando a biruta ideológica que dita os rumos das coberturas jornalísticas na grande imprensa virou abruptamente. Comecei a relembrar os momentos daquelas cinco horas para tentar entender onde eu havia errado. Eu estava exatamente onde tudo começou, como quase todos os jornalistas que acompanhavam a manifestação. Presenciei, a menos de cinco metros, os policiais do Choque atirarem balas de borracha e bombas a esmo na esquina da Consolação com a Maria Antônia. Exatamente ali, eu e um grupo de, não sei, talvez 10 fotógrafos, fomos alvo desses mesmos policias. Atiraram contra nós, jogaram bombas de efeito moral e bombas de gás, uma delas, inclusive, atingiu minha perna. Há um vídeo circulando no Facebook mostrando esse momento.

Quando atravessei a rua e fiquei atrás de um ônibus fotografando, voltaram a mirar em nós, fotógrafos. Ao meu lado, um colega, que agora soube ser da Folha, foi atingido na virilha por uma bala de borracha. Na Augusta, vi os policiais atirarem a esmo nas pessoas. Vi uma senhora que tomou um tiro no pescoço ao sair da igreja. Ali também, ao lado de um das viaturas, ouvi pelo rádio um outro policial explicando que estavam encurralando os manifestantes na Avenida Angélica e que eles agora iam “se foder”.

Lá na Angélica, com o trânsito em direção à Paulista parado, vi os policiais criarem uma chuva de bombas de gás, que caiu sobre as pessoas que estavam em seus carros e nas centenas de manifestantes que desciam a avenida. Lá, também, vi um soldado mirar em um grupo de umas cinco garotas que pareciam ter desistido do protesto e atirar, de perto. Na Rua Sergipe um morador de quase uns cinquenta anos, talvez, pedia calma aos policiais, pedia que parassem com as bombas porque havia muitas pessoas idosas ali. Um dos soldados lhe apontou a escopeta e disse: “Vai dormir antes que sobre pra você”.

Ainda assim, depois de assistir a tudo isso, não cheguei em casa com a sensação de que a Polícia Militar havia exagerado. Hoje, 48 horas depois de um intenso bombardeio de informações, relatos, opiniões e imagens, cheguei a uma conclusão estranha. Acho que não vi notícia passar encilhada porque é assim que conheço a polícia, desde a minha infância, e é isso que sempre esperei e espero dela. Nunca poderia imaginar situação diferente do que houve na quinta-feira.

Sou do subúrbio do Rio de Janeiro, mais especificamente de Nova Iguaçu, baixada fluminense. Passei parte da minha infância e adolescência lá. Morei também em Duque de Caxias, também baixada Fluminense, e os bairros da Zona Norte Carioca forjaram o jovem que fui. Até hoje conheço pouco o Rio que todo mundo conhece. O da Zona Sul. Lá no subúrbio sempre foi assim. Quer dizer, nunca tive uma escopeta armada com balas de borracha apontada pra minha cara. Mas já tive, algumas vezes, revólveres, pistolas e também escopetas apontados pra mim. Todos eles carregados com munição letal. Em todas as vezes que fui abordado pela polícia, seja no centro do Rio após sair de um show na Lapa, seja voltando pra casa com alguns amigos, nunca houve cordialidade. Nunca houve tratamento digno.

Lá em Nova Iguaçu, onde meu pai mora até hoje, nunca vi muita polícia, na verdade. Os policiais que moram no bairro sempre se encarregaram de fazer a Justiça por ali. Agora mesmo, em 2013, um deles, que foi meu amigo de infância, que jogou bola comigo, é um dos matadores oficiais de lá. Ali ele é o Estado. Investiga, julga e executa. Ali, diferente daqui, tem pena de morte. E todo mundo acha normal. Dia desses, visitando meu pai, ele me contava que havia poucas semanas esse meu amigo havia feito uma “limpa” no bairro, eliminando os pequenos assaltantes que não compreendem que roubar em bairro de pobre é algo que ultrapassa qualquer limite moral até para os amorais. “É a barbárie”, dizia meu pai. “Mas é a única maneira de as coisas se manterem tranquilas”.

Eu não sou um conhecedor da periferia de São Paulo. Fui poucas vezes nas “quebradas” e tenho poucos amigos lá. Desde que me mudei pra cá, há quase 15 anos, cruzei a fronteira que divide “nós” e “eles”. Sou classe média alta, burguesa e até fiquei mais branco. No último senso, o entrevistador não queria aceitar que eu me declarasse pardo, apesar da cor da minha pele mostrar a mestiçagem de índio, negro e europeu da qual sou feito. Não fui mais parado pela polícia e a truculência das forças de segurança só senti nas vezes que fui aos estádios ver o meu glorioso Flamengo ou alguns clássicos paulistas.

Mas, mesmo do lado de “cá”, polícia sempre foi sinônimo disso: de injustiça, de agressão, de repressão, principalmente contra quem está do lado de “lá”. Lá, na periferia, como chamam aqui, ou no subúrbio, como chamamos no Rio, não há bomba de gás lacrimogêneo nem de efeito moral. As balas matam. Só no ano passado 323 pessoas morreram oficialmente em confrontos com a Polícia aqui em São Paulo. No mês de outubro, no auge da guerra entre a PM e o PCC, mais de 170 pessoas foram assassinadas na região metropolitana, boa parte delas por “grupos de extermínio”. Não precisa ir longe. Basta assistir ao programa Polícia 24 Horas, exibido pela TV Bandeirantes, para ter uma idéia de como é a relação dos que vivem do lado de “lá” com a polícia.

Só no ano passado, centenas de famílias perderam pais, irmãos, filhos, gente querida, que para nós, do lado de “cá”, são só números, mas que do lado de lá são muito importantes. Há quem afirme que só conseguimos sentir compaixão por aqueles que nos são semelhantes. Isso explicaria porque os alemães massacraram com tanta crueldade os judeus, porque a comunidade internacional permitiu o genocídio de Ruanda ou porque os europeus escravizaram os negros e os tratavam como animais. Explica também, eu acho, a comoção que sentimos ao ver jovens encurralados tomando tiros de borracha e não conseguimos expressar tamanha revolta ao saber que centenas de jovens foram mortos nas periferias sem terem feito nada, absolutamente nada, para serem sumariamente executados.

Não sei, talvez eu esteja buscando explicações por eu não ter conseguido ver o que todos viram. Pode ser. E não estou, de maneira alguma, querendo dizer que as pessoas que foram agredidas pela polícia merecem menos solidariedade, respeito e civilidade. Mas eu espero genuinamente que os do lado de “lá” se unam aos do lado de “cá” na segunda-feira com a demanda para que nós tentemos, ao menos, nos enxergar como iguais e, se isso não for possível, que ao menos o Estado o faça. Por bem ou por mal.

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