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quarta-feira, 24 de julho de 2013

Entre luzes que lhe escondem

Dalwton Moura

No calor desta efeméride, em meio ao reconhecimento à vasta e notável obra de Ednardo (e à necessária discussão sobre a renovação, reafirmação ou estagnação dessa obra, nas últimas décadas), cumpre destacar um outro aspecto da atuação do artista. Não o cantor e compositor, nem o produtor responsável, ao lado de Augusto Pontes e de tantos outros, pelo caleidoscópio de linguagens e expressões da Massafeira Livre, embora ele permaneça indissociável dessa condição. Mas o aglutinador responsável por um dos mais significativos registros sobre a música cearense, na forma de livro.

Falamos de Massafeira – 30 Anos, publicação de fôlego, lançada em 2010, como um imprescindível registro de muitos dos infinitos ângulos possíveis da “marmota do mormaço”, a história enriquecida pelos testemunhos dos que a vivenciaram, mas também de várias visões sobre aquela tentativa de inserção de novas e numerosas gerações de músicos do Ceará na faixa de visibilidade da música nacional.

É sintomático que, tanto tempo e tantas mudanças depois, entre fronteiras dissolvidas e a reinvenção dos próprios modos de produção, distribuição e consumo musical, a música feita no Ceará siga enfrentando desafios semelhantes aos de décadas anteriores, quanto à sua difusão para públicos mais amplos, aqui e em outros cenários, e à sua validação na mesma medida de sua qualidade e sua diversidade. Um mergulho nas causas dessas limitações demandaria um grande debate, mas parece claro que o caminho para superá-las passa por alguns pressupostos, entrelaçados justamente na construção dessa afirmação.

Se a geração de Ednardo, Belchior, Fagner, Rodger Rogério, Téti, Cirino, Brandão, Fausto Nilo, Ricardo Bezerra, Dedé Evangelista, Tânia Cabral, entre outros nomes de destaque, permanece, ainda e para muitos, como referência mais imediata quando se fala em “música cearense”, as várias gerações que a sucederam encontraram diante de si, em diferentes níveis e contextos, a tarefa de inventar sua própria estrada. Muito mais que fáceis e superficiais generalizações do tipo “depois deles, não apareceu mais ninguém”, há que se buscar compreender o porquê de certas dificuldades persistirem por tanto tempo e permearem a trajetória de tantos artistas, mesmo aqueles com mais claro potencial de comunicação e mercado.

As tramas dessa teia se tornam mais complexas à medida em que, no plano local, vivemos ainda a construção de uma cena, o esboço de uma indústria cultural minimamente sustentável como tal. Enquanto isso, no âmbito geral, as configurações da música se modificaram tão rápida e profundamente que mesmo cenários e protagonistas de há muito estabelecidos se viram fadados a reinventar-se ou desaparecer. De todo esse processo, a concorrência aumentou e a diversidade emanou como um “efeito colateral” – extremamente saudável para o público ativo o suficiente para garimpar novos nomes. Positivo também para os artistas que compreendem essa realidade e desenvolvem, na medida da perna de cada um, os instrumentos para nela atuar. Mesmo assim o nome, a fama, os milhões de discos vendidos em um ontem distante, a consagração em diferentes níveis permaneceram como valiosos distintivos nas prateleiras virtuais.

A quem não detivesse tal condição, restava a luta pela etiqueta do novo, da “tendência”, do “artista em ascensão” ou de “um novo nome promissor”. E é exatamente aqui que os caminhos dessa história se encontram. Nossos novos nomes seguem necessitando de instâncias de consagração, de parâmetros de validade, de chancelas que os coloquem em pauta e os legitimem perante um público maior. A escassez de bibliografia sobre o cenário da música no Ceará é um dos sintomas dessa cena ainda em construção. Se ainda lutamos para ter mais produtos musicais – discos, singles, shows, clipes, turnês – bem acabados e divulgados, com regularidade e visibilidade, terminamos por cultivar um quê de incompreensão diante de inúmeros nomes com grande potencial que não conseguem – por quê? – sedimentar as necessárias pontes até maiores audiências.

Pois bem. Massafeira – 30 Anos, o livro, ou projeto multimídia, é uma louvável exceção a essa regra. Ousa destoar do coro do “quase”, do “médio”, do “possível”, para afirmar que a música feita no Ceará merece, sim, um registro em centenas de páginas em couché e capa dura. Trata-se de um olhar em retrospecto que sugere muitos e importantes pontos para essa discussão. Mas principalmente coloca em perspectiva a música de um Ceará grande, destoando da leitura, exposta por parte da imprensa, de que aquela teria sido uma geração “abortada”, sufocada entre o sucesso reluzente do “Pessoal” e as mudanças de cenário que travaram o jogo.

Outro bom debate. Independentemente dele, porém, é inegável que o livro cumpre uma tarefa importantíssima, ajudando a aguçar o olhar e a provar que é possível, para esta mesma geração e para aquelas que a ela se seguiram, ver sua história contada de forma respeitosa e atraente. Ter ao menos o benefício da dúvida. Contar com um registro à altura da repercussão que, afinal, a Massafeira de Ednardo, Augusto, Brandão e muitos outros teve para muitos.

Os ecos da Massafeira chegaram a muitos outros potenciais ouvintes e novos irradiadores através da publicação, que bem pode merecer suas críticas, pela ausência, mesmo intencional, de maior ordenamento, pelo espaço para alguns nomes deslocados, pela ausência de outros. Mas, desde a capa em vermelho com o infinito tracejado nos chifres do carneiro estilizado por Brandão, o livro sugere muito mais a verborragia que a síntese, o múltiplo que o individual, a hipótese que a conclusão. Apesar de ter sido organizado por Ednardo e idealizado também por Julia Limaverde (filha do cantor), são as várias vozes sobre a Massafeira as responsáveis pelo encanto do livro. Do palco à academia, de 1979 a 2010, do TJA ao Dragão do Mar, da Massafeira ao Manifesta.

Outro grande trunfo da obra é o precioso acervo fotográfico de Gentil Barreira sobre a Massafeira, em 1979, e a posterior viagem dos cearenses ao Rio de Janeiro, para a gravação do que viria a ser um marcante, embora problemático, álbum duplo. Os fotogramas daquela efervescência revelam desde o “Pessoal” até os novíssimos músicos que reclamavam espaço para o rock e o blues, em meio ao telúrico, ao lírico, aos tons menores da tradicional canção cearense. Todos e cada um foram registrados pelo olhar de Gentil, em fotos em preto-e-branco, mas plenas de matizes na linguagem, nos detalhes, nas leituras, nos desejos. São os longos cabelos de Ife ou de Klaus Voormann a empunhar o contrabaixo? São Waters, Mason, Gilmour, Barrett e Wright ou Téti, Rodger, Stélio, Régis e Luiz Miguel a se debruçar sobre os botões da mesa de som? São os punks londrinos ou os jeans e olhares de Mona Gadelha e Lúcio Ricardo? Paralelos que brotam das imagens.

Outra oportunidade que justifica a viagem é a de (re) ouvir os dois LPs da Massafeira, transpostos para CDs a realçar o brilho de eternas joias, como “Vento-rei”, “Aurora”, “Pé de espinho”, “Aviso aos navegantes”, “Cor de sonho”, “Último raio de sol”... Patativa em “Senhor doutor”, Ana Fonteles e Ednardo em “O sol é que é o quente”, Téti e Tânia Cabral em “O rei”, Ângela Linhares em “Como as primeiras chuvas do caju”. É, faltou “Frio da serra”, gema da lavra de Petrúcio Maia e Brandão... Mas esta vale o esforço de procurar logo ali.

Entre virtudes e limitações, o livro organizado por Ednardo e tecido a inúmeras mãos demonstra um nível de valorização que, infelizmente, ainda destoa daquilo a que a música feita no Ceará está acostumada. Precisamos de mais registros como este, mais publicações que digam das asfixias e dos paradoxos mas também da verdadeira riqueza de nossa música. Que possibilitem abreviar o hiato de informações entre passado e presente, descortinando nossa trajetória, em boa medida ainda a ser contada. Porque, apesar das luzes que lhe escondem, essa história segue se refazendo em novas canções. E tem cada vez mais pressa de continuar.

Dalwton Moura é jornalista, escritor e crítico musical. Autor do livro Nos Acordes do Jazz & Blues -Memórias do Festival Jazz & Blues de Guaramiranga (2013).

http://www.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2013/07/20/noticiasjornalvidaearte,3095390/entre-luzes-que-lhe-escondem.shtml

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