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quinta-feira, 5 de junho de 2014

A Natureza No Dia-a-Dia

Por Carlos Walter Porto Gonçalves,*

Sem que nos apercebamos, usamos em nosso dia-a-dia uma série de expressões que trazem em seu bojo a concepção de natureza que predomina em nossa sociedade. Chama-se de burro, ao aluno ou a pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao mau-caráter; de cavalo ao indivíduo mal-educado; de vaca, piranha e veado aquele ou aquela que não fez a opção sexual que se considera correta, etc… Juntemos os termos: burro, cachorro, cavalo, vaca, piranha e veado são todos nomes de animais, de seres da natureza tomados – em todos os casos – em sentido negativo, em oposição a comportamentos considerados cultos, civilizados, e bons. O antropólogo Lévi-Strauss nos ensina que os romanos chamavam de bárbaros  aos outros povos tido por eles como não civilizados e que a palavra "bárbaro" originalmente significava canto desarticulado das aves. Portanto, bárbaro era o que é da natureza – ave – por oposição ao que é da cultura – romano. Chama-se de selvagem àquele que se encontra no polo oposto da cultura. E, notem bem, selvagem quer dizer da selva, mais uma vez, do plano da natureza.

A natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que opõe à cultura. A cultura é tomada como algo superior e que conseguiu controlar e dominar a natureza. Daí se tomar a revolução neolítica, a agriCULTURA, um marco da História, posto que com ela o homem passou da coleta daquilo que a natureza “naturalmente” dá para a coleta daquilo se planta, se cultiva. Com a agricultura nos tornamos sedentários e não mais nômades. Primitivos são aqueles que vivem da caça, da pesca e da coleta ou de uma agricultura itinerante, posto que não conseguem manter a fertilidade do solo, necessitando migar periodicamente em busca do alimento. Com a agricultura irrigada alguns povos se estabelecem sobre um determinado território de maneira mais permanente, mais estável. A vida se torna menos inconstante, domestica-se a natureza e, assim, forma-se os berços das civilizações na Mesopotâmia, no Egito, na China, etc. Dominar a natureza é dominar a inconstância, o imprevisível; é dominar o instinto, as pulsões, as paixões.

Tem-se como necessário o artifício das leis para evitar que retornemos ao reino animal, tido como lugar dos instintos. O Estado, a lei e a ordem são tomados como necessários para evitar o primado da natureza, onde reina o caos ou, no máximo, a “lei da selva”, onde todos lutam contra todos. Basta um rápido olhar sobre os diversos Estados constituídos com suas leis e suas ordens para notarmos o quadro de fome, de guerras, de opressões e violências de todos os tipos que eles mesmo instituíram em nome da civilização para constarmos a inconstância deste tipo de abordagem. Na verdade, encontramo-nos diante de um conceito de natureza que justifica a existência do Estado. Este é condição de “civilização” e “primitivos” são os povos que não têm Estado. Esta é uma das razões para que se chame de ingênuo ao ecologista que cita o indígena como modelo de relação entre o homem e a natureza.

Além disso, a expressão dominar a natureza só tem sentido a partir da premissa de que o homem é não-natureza…Mas se o homem é também da natureza, como falar em dominar a natureza? Teríamos que falar em dominar o homem também… E aqui a contradição fica evidente. Afinal, quem dominaria o homem? Outro homem? Isso só seria concebível se aceitássemos a ideia de um homem superior, de uma raça superior, pura – e a história já demostrou a farta as consequências destas concepções.

A natureza é,em nossa sociedade, um objeto a ser dominado por um sujeito, o homem, muito embora saibamos que nem todos os homens são proprietários da natureza. Assim, são alguns poucos homens que dela verdadeiramente se apropriam. A grande maioria dos outros homens não passa, ela também, de objeto que pode até ser descartado. A visão tradicional da natureza-objeto versus homem-sujeito parece ignorar que a palavra sujeito comporta mais de um significado: ser sujeito quase sempre é ser ativo, ser dono do seu destino. Mas o termo indica também que podemos ser ou estar sujeitos – submetidos – a determinadas circunstâncias e, nesta acepção, a palavra tem conotação negativo. Eis aí o paradoxo do humanismo moderno: sua imperiosa necessidade de afirmar uma visão de mundo antropocêntrica, onde o homem é o rei de tudo, o faz esquecer o outro significado do termo “sujeito” - o sujeito pode ser o que age ou o que se submete. A ação tem a sua contrapartida na submissão.

Já vimos como em torno do conceito de natureza se tecem no dia a dia as relações sociais. Talvez seja agora interessante localizar de onde brota essa visão de natureza entre nós.

*em "Os (des)caminhos do meio ambiente" - Editora Contexto pág 25 a 27

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