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segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Sendo estrangeira, não sou estranha

por Débora Dias

“A terra que piso é outra e outra é a compleição do comum das gentes que a habitam, as quais me sugerem que, sendo forasteiro, não sou estranho, porque se me tornou afetivamente fluida a fronteira do portuguesismo e da brasilidade”. Joaquim de Carvalho, historiador da cultura e da filosofia portuguesa, durante conferência apresentada em sua primeira viagem ao Brasil, 1953.

Viajar é diferente de morar. E para se viver em um lugar outro, penso eu, o esforço e a vontade de saber do outro, mantendo o próprio eixo, talvez nunca prescindam. Estrangeira em uma terra onde a língua que falo é a mesma, há três anos habito Portugal. A cada dia tento saber mais da sua complexidade, por vezes me irrito quando não alcanço os porquês, mas na maior parte do tempo é sentir, e aprender pelo sentimento. Agora em Lisboa, vivo em coletivo na cidade mulher luminosa e simpática. De sorriso largo, se abre fácil para os tantos forasteiros que por aqui aportam. É de muitos e não é de hoje que esse ponto privilegiado entre mundos mistura partida, chegada e passagem. Mas altera também fácil o humor, tem seus dias de chuva, e faz pensar na humidade (umidade, no uso do português brasileiro) e aquilo termina. Quando volta radiante e ilumina, é de um céu que desaba contentamento.

Dias atrás, em um café, uma pesquisadora indagava sobre o fenômeno dos brasileiros no País em anos de tanta crise. Às levas de trabalhadores, chegam agora os estudantes. Defendi que o argumento da língua é forte, mas não chega perto de explicar, nem de ser o motivo mais importante. Muitos são os caminhos que trazem as pessoas para cá ou que as fazem ficar. Se tiver que escolher, digo que foi porque amava a ideia e, como acontece frequentemente aos amores, idealizava Portugal antes de o conhecer, de aqui alguma vez ter estado. Depois desses poucos anos de convivência, conceitos foram se formando nos prazeres, nas dificuldades e nos aprendizados, e o amor se transformou. De Fortaleza para Lisboa, conheci a solidariedade imigrante, e com ela fui guiada para a estação de comboios, chegando em Coimbra. Na cidade do rio Mondego, era começar o doutoramento, preparar a chegada da filha então com dez anos, tentar uma bolsa que me permitisse ficar mais tempo a viver nesse outro tempo, diferente do que tive. O horizonte era imenso e o agora ainda tão distante. A crise era o futuro que hoje se realiza dramaticamente. E o futuro chegou rápido. A cada ano, as promessas de piora se cumpriam e muito do que o país conquistou após o abril de 1974, com o fim da mais longa ditadura da Europa ocidental, foi reduzido, extinto ou ameaçado. Pessoalmente, após quase um ano de incertezas, chegou do Brasil a tão esperada bolsa de estudos, e com ela a possibilidade institucionalizada de ficar mais. A filha foi se adaptando a um outro jeito de viver e de sentir, mergulhando no que chamamos cultura portuguesa, às vezes parecida, às vezes tão diferente da nossa. Aqui nos descobrimos brasileiras, afirmamos identidades na diferença. Conhecemos mais da África e da Índia, na mistura das gentes. Hoje, aos 13 anos, o aqui é mais dela do que meu.

Nesse tempo, viajamos, acompanhamos as estações, terminei minhas lições na universidade, pesquisei em arquivos, me emocionei até com papel, tinta e o pó. Fui para o estrangeiro desse estrangeiro, e voltei. Conheci gente, firmei laços, soltei outros, e aconteceu de doer. Em outros dias foi a saudade nesse Portugal já tão saudoso em si. De Coimbra mudei para Lisboa e casei com quem já era companheiro de vida e veio para perto. Mudamos de casa em três. Foi muito e ainda não foi o bastante. Vendo os que chegam a cada temporada, revendo os encantos e estranhamentos de chegada, é como se reatualizasse minha condição de imigrante, um pouco mais acomodada a cada ano, mas sabendo que esse tempo está suspenso, à espera de desfecho. Desenlace que talvez nem queira ainda. E o que fica? Muito dos versos de Ricardo Reis, aquele outro do Pessoa.

“Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros Onde que quer que estejamos. Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros Onde quer que moremos. Tudo é alheio Nem fala língua nossa. Façamos de nós mesmos o retiro Onde esconder-nos, tímidos do insulto Do tumulto do mundo. Que quer o amor mais que não ser dos outros? Como um segredo dito nos mistérios, Seja sacro por nosso”.9/6/1932

Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).

http://apulga.com/sendo-estrangeira-nao-sou-estranha/

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