Em entrevista ao caderno Vida & Arte, na edição de hoje do O POVO, o sociólogo Paulo Linhares, presidente do Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC) – motor criativo e gerencial do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - afirmou que “política de cultura não é uma política de reparação social”. A frase se deu em meio a uma (boa) reportagem feita pela jornalista Raphaelle Batista, em que Paulo rebate algumas tantas críticas ao Porto Iracema das Artes, núcleo de formação do Dragão, e anuncia o porvir da instituição, a partir de outras tantas parcerias.
“Reparação social, quem quiser fazer, vá fazer na área social. Eu faço política de cultura, não tenho que reparar nada”, disparou. “Acho absurdo cobrar das políticas culturais reparações sociais. Sou contra esses contratos que dizem assim: ‘em contrapartida a um espetáculo você faz não sei o que, não sei o que social’. Pra que isso? A gente não está aqui para fazer reparação social. Se a gente fizer cultura bem feita, a gente está fazendo mudança social muito mais veloz, com muito mais competência”.
Provocador inteligente e de inegável competência midiática, Paulo certamente se fiou em sua verve publicitária para tentar defender e legitimar sua cria. Um projeto que pode ser considerado tão mais audacioso quanto mais compreendermos quão miserável ainda é o Ceará, estado que já há uns bons 30 anos convive com a sombra do próprio Paulo nos bastidores ou nos holofotes das políticas públicas de cultura.
Ao falar que política de cultura não é política de reparação social, Paulo apenas traduz o sentido mobilizador de sua própria trajetória como homem ligado à cultura e às artes no Ceará. Qual seja, o de cultura como vitrine de "experimentação" estética, de cunho eminentemente elitista, a nos redimir de uma suposta condição de povo culturalmente atrasado. Nunca lhe interessou, a rigor, o poder efetivo de transformação da realidade social por parte da cultura, apenas o malabarismo de certos símbolos culturais, devidamente convenientes ao chefe do governo de plantão, como forma de legitimação de interesses políticos e econômicos. Não há, portanto, nenhuma novidade em sua fala – dessa vez talvez apenas mais sincera que outras falas suas em reportagens Ceará afora.
À cultura como potência humanizadora de toda uma coletividade, o presidente do IACC prefere apenas a construção midiática de uma política supostamente civilizada, mas cuja base material se mantém mal disfarçadamente provinciana. Aliás, essa expressão, “provinciano”, me sugere não o grau de desenvolvimento econômico de uma sociedade ou da estreiteza de pensamento em relação às coisas da arte. “Provinciano” ou, em seu oposto, “civilizado” são medidas de engajamento em relação ao outro, de respeito com a "res publica", de compromisso com um grupo social. São noções ligadas menos à vaidade e mais à solidariedade (ou à falta dela) como potencial integrador de direitos e deveres.
Em livro recente, Cultura em movimento, a ex-secretária de Cultura Claudia Leitão tratou dessa relação entre o saber, a cultura e aquilo que Edgar Morin chama de “Política de civilização”. “Tanto a Universidade, na produção de estudos e pesquisas, quanto o Estado, na formulação de políticas públicas, necessitam ‘religar saberes’, na tarefa da construção de novos significados para o desenvolvimento”, escreve Claudia. O debate entre a ex-secretária e o espírito do ex-secretário-atual-gestor se faz bem evidente ao longo do livro de Claudia, publicado ano passado pela Armazém da Cultura.
Em outro livro nem tão recente, mas de modo algum extemporâneo à discussão (Cultura e Democracia na Constituição Federal de 1988, publicado em 2004 pela editora Letra Legal), o professor Humberto Cunha – outro ativo militante dos debates públicos sobre cultura no Ceará – também restitui algumas boas fronteiras ao conceito. Para além de sua dimensão antropológica ou de entretenimento, Cunha trata a cultura como direito, como expressão ligada “às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram a seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referente ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa humana”.
Portanto, numa sociedade tão desigual como a nossa, uma política de cultura é, sim, e deve ser, uma política de reparação social. Mas não apenas no sentido burocrático-fiscal colocado por Paulo. A reparação que a cultura traduz não é a das planilhas inescrutáveis dos birôs oficiais. Mas a do instrumento transformador de um horizonte social, que reconecta sensibilidade e saberes, que inclui o periférico e o diferente em outros "centros", que afirma a solidariedade. Uma política cultural só tem sentido se atuar permanentemente para diminuir o déficit simbólico de uma população em relação à sua própria memória, à sua história, a seu estar no mundo.
O Dragão do Mar e o projeto do Porto de Iracema possuem inúmeras iniciativas e ações que podem apontar justamente para essa maior aproximação da população cearense com sua própria cultura. Mas a questão colocada pela declaração de Paulo Linhares não é essa. A questão é que, quando um dos principais gestores da cultura do Estado afirma não compreender essa dimensão reparadora da cultura, não estamos diante de uma mera opção estética ou gerencial, mas de uma decisão política que negligencia um direito fundamental ao povo cearense.
Um comentário:
Ô caba bom esse Filipe.
Só tenho a acrescentar, que pessoas feito esse Paulo que "se acham" na sua "vã e limitada sabedoria", pois que identificada tão somente com a contemporaneidade, não conseguem, de fato, entender, atinar com os sentidos largos de reparação.
É de dar pena. O pior é que é esse o "chamado" intelectual que cabe nas páginas azuis.
Felipe, sou sua fã.
Mag.(Magnólia)
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