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domingo, 5 de fevereiro de 2012

A folia das multidões contra a sociedade do controle

Por Leonardo Sá

A paz é condição para a experiência de vida democrática, todavia nenhuma ordem autoritária é capaz de garantir a paz. O Estado policial não leva à paz civil que expressa liberdade política das multidões, pois, ao contrário, baseia-se na lógica da guerra. Assim, de um lado, desconfiamos do reducionismo que transforma o problema da segurança cidadã em questão de polícia, gerando uma antinomia de valor que põe em risco a festa da liberdade sob a capa de “paz ordeira” das massas. 
Leonardo Sá
E, de outro lado, lamentamos uma democracia capenga, vista apenas como regime formal de governo, que sem projetos públicos de segurança humana - para usar a feliz expressão que ouvi recentemente de um camarada nosso, militante dos direitos humanos – que acaba por permitir que a busca por respeito à integridade física e à dignidade dos cidadãos e das cidadãs se transforme em pretexto para a repressão policial contra os foliões. 

Vê-se, portanto, que os carnavais são uma questão de antropologia do poder e da política. Afinal, as folias das multidões (com suas loucuras, delícias e liberdades) são boas para pensarmos sobre esses rituais de celebração livre e criativa contra a paranóia da sociedade do controle. Mas será que todos os eventos funcionam em torno de práticas de autonomia e igualdade? Certamente que não, pois não há valores mais raros (e potencialmente abundantes) do que estes. São valores constituintes.
Ocorre que em cidades partidas, fraturadas pela força das desigualdades e dos mecanismos de opressão e integração marginal de indivíduos, os carnavais são também rituais de poder e de execração pública de segmentos tidos, de modo micro-fascista, como indesejáveis: o povão, as periferias, as favelas. Forças extrínsecas às festas, que não partem de seu coração, exultam quando põem a mortalha do medo, do preconceito e do ressentimento sobre o corpo pulsante do desejo popular de carnaval.
 
Neste evento, expressam-se misturados os anseios de liberdade e a crise de legitimação pela qual passa o sistema de dominação a crédito e juros do capitalismo contemporâneo, que confessa não ter mais palavras para agir, e prefere o silêncio tecnocrático como a bola ideológica da vez.

Três problematizações podem ser suscitadas para debate: 
a) eventos mercantilizados, elitizados, privatizados, onde o poder do dinheiro e do sucesso são valores “festejados”, sob a garantia policial para quem pode pagar contra aqueles que sequer podem se aproximar, reforçando um tipo de apartheid festivo, isso é solução? 
b) megaeventos abertos, gratuitos, massivos (alheios às multidões criativas), financiados pelos governos, realizando altas somas de transferência de dinheiro público para a indústria cultural e que funcionam com forte policiamento, do tipo ‘manutenção’ da ordem pública, enquanto as massas alucinam e deliram ao sabor das drogas comercializadas a todo vapor, isso é desejável? 
c) eventos artesanais, ou semi-artesanais, livres, auto-gestionários, ou quase isso, que rejeitam a massificação e a mercantilização, em nome da criatividade e de valores contra-hegemônicos, mas que, por causa disso, precisam funcionar como ilhas criativas, como zonas de autonomia temporária, sentindo-se ameaçadas por tudo aquilo que negam, inclusive pelo medo e pela sensação de insegurança, poderiam se multiplicar e se irmanar com as favelas, deixando de ser, implicitamente, classistas, ou seja, expressividades da “classe média” intelectualizada, universitária e artística, isso é possível?

Esperamos que, em Fortaleza, o Sanatório possa ser efetivamente Geral, fazendo rizoma com o Luxo da Aldeia que habita cada uma de nossas centenas de favelas, e que o poder público faça sua parte na construção da democracia adotando modelos preventivos de segurança cidadã, com inteligência, legalidade, respeito aos direitos humanos e, principalmente, à participação popular, podendo assim contribuir para garantir alguma segurança humana para emissões de singularidades, aos borbotões, em folias sem apartheid.

LEONARDO SÁ é doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (Lev /UFC)

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