Por Lucio de Castro
Foi uma das maiores atrocidades da história contemporânea do Brasil. Os anos de chumbo estavam no auge. Comportamentos arbitrários eram regra naqueles tempos. Juntando-se a atmosfera da ditadura com a ganância da especulação imobiliária e o total desprezo por aqueles que são invisíveis socialmente para alguns criminosos de colarinho branco, a noite de 10 de maio de 1969 foi o cenário para uma das mais sórdidas ações que se tem notícia.
No coração do Rio de Janeiro, abençoada por uma localização espetacular, entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e a praia do Leblon, colada ao Clube de Regatas do Flamengo, existia a Favela da Praia do Pinto. Berço de gente ordeira e muito talentosa, como veremos adiante. Não tenho dúvidas em afirmar: o metro quadrado mais talentoso do esporte brasileiro em todos os tempos, sem ficar muito atrás na música e na poesia. Ali Vinícius de Moraes fazia noitadas, e tirou inspiração para muito do que assombrou o mundo em “Orfeu”. Cinco escolas de samba brotavam no exíguo espaço, tamanho o talento.
Ali morou um monstro sagrado, cujo talento merecia ser muito mais lembrado e reverenciado ainda hoje: Monsueto, de versos geniais, músicas inesquecíveis, pintor de talento e humorista não menos talentoso. E craques em profusão.
Era uma ofensa para alguns aquela gente ocupando lugar tão nobre do Rio. Na impossibilidade de serem tirados todos e varridos, como era moda na época, nas não menos absurdas remoções que varriam para lugares então remotos os mais pobres, os tais criminosos de colarinho branco não tiveram dúvidas: atearam fogo na favela. Afinal, eram pobres, negros e favelados ali mesmo, espécie de senzala moderna para essas pessoas...
Até hoje não se sabe sobre mortos, feridos. É sabido que todos perderam suas casas. Muitos foram para a Cidade de Deus, (o filme de mesmo nome tem parte onde mostra a essência e o espírito dessas remoções), outros para Cordovil, e mais alguns para outros conjuntos residenciais, longe de seus empregos e de onde viviam. Alguns foram parar na recém construída Cruzada São Sebastião, obra de um dos santos e herois desse país, Dom Heldér Câmara, conjunto residencial perto de onde estavam, no Leblon. Apesar de todos os gritos preconceituosos que sofriam de gente que não queria “aqueles favelados” perto.
Foi nessa Cruzada que, sabe-se lá a razão, surgiram inúmeros talentos para o esporte brasileiro. Adílio, Júlio César Uri Geller ( que aos 7 anos fugiu de seu barraco em chamas naquele 10 de maio), Paulinho Pereira, Rui Rei, Ernani (que jogou no Vasco e hoje seria um talento milionário, faria carreira em um grande da Europa), Dominguinhos (vindo da Praia do Pinto, jogou no Flamengo e depois em um Campo Grande que tinha Barbosa no gol), Antunes (lateral que jogou no Flamengo de Zico), Almir (monstro do basquete), e tantos outros, de tantos outros esportes. Um time de futebol de praia que marcou época, invicto por muito tempo.
E versos maravilhosos, nos sambas que viravam a noite do Rio e ainda viram na noite da Cruzada. No entanto, dramaticamente, o registro de muito dessas pérolas de nossa poesia e música vão se perdendo. Por serem obras de poetas nem sempre reconhecidos, sem serem gravados, chegaram até aqui pelas mãos dos mais velhos, alguns, por tradição oral, passando de pais para filhos. Mas a geração da Praia do Pinto vai envelhecendo, alguns se indo...
Muitas vezes fico por ali ouvindo algumas dessas pérolas. Os velhos lembrando sambas antológicos, como o de um tal Ari Meganha, bamba da época no pedaço, autor de versos lancinantes: “diga-me se tem amizade, não posso viver na indecisão, só quero saber pra aliviar meu coração: Diga-se me quer ou não”). A cada vez, sinto imensa dor de ver isso se perdendo e um pouco de impotência. Numa tentativa se salvar tamanho patrimônio, pensei em algo como o que Marisa Monte fez com a Velha Guarda da Portela, magistral resgate de letras históricas. Cometi a ousadia de falar com Sérgio Cabral (o pai, claro) há algum tempo, para ver o que podia ser feito. Gostou da ideia, quem sabe...Num Baixo desses da vida, ou numa Lapa, já não lembro bem, esbarrei com Teresa Cristina e trocamos essa ideia, bem vista por ela também. Recentemente, ela mesmo regravou lindamente a linda “Me Deixa em Paz”, (obra prima de Monsueto) com Seu Jorge.
Alguns dos personagens desse Buena Vista carioca são depositários de verdadeiros tesouros. O meu Buena Vista tem pressa, a vida corre...
http://espn.estadao.com.br/luciodecastro/post/188261_O+MEU+BUENA+VISTA+TEM+PRESSA
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