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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Suporte: pra que te quero

Por Rogério Lama

Há um episódio do seriado mexicano “Chaves” que mostra o personagem principal vendendo um doce para si próprio. Ele troca freneticamente de lado no balcão, fazendo às vezes de vendedor e cliente, usando a mesma moeda que recebeu da venda para comprar todas as guloseimas, uma a uma. Uma pequena adaptação dessa cena é repetidamente estrelada pela recém centenária Indústria Fonográfica. Na cena, a protagonista usa o mesmo truque Mandrake, só que para vender o mesmo produto várias vezes para o mesmo cliente.


O martírio pelo qual passa o colecionista musical parece não ter fim. Depois de consumirem os mesmos títulos em Lp e K7 nas décadas de 70 e 80 em nome da portabilidade e terem sido dissuadidos do valor de seus acervos no final da década de 1980, tudo em nome da vantagem do som puro e cristalino, eis que novamente o disco de vinil surge dentre as nuvens, como um deus que veio salvar os ouvintes da experiência paupérrima de apreciação através dos arquivos digitais. 
Sim, a cara de pau e o desespero de mãos dadas desconhecem fronteiras. E o maior descalabro desse cenário, é o festival de opiniões “embasadas” que se disseminam como virais pela grande rede alicerçando qualquer discussão de bar. Segundo algumas delas, você que pôde ouvir o Paêbiru de Zé Ramalho e Lula Côrtes sem desembolsar uma garoupa sequer, (atenção: sua audição foi comprometida. Há uma perda de informações no arquivo digital. Um “achatamento” do som.) “Existe uma compressão na onda sonora que impedirá você de ouvir o 2º Estudo para Violão de Villa Lobos na faixa “Harpa dos Ares”. 



Portanto, não espalhe por ai que ouviu esse disco. Você marcou gol com a mão. Sua salvação é que as gravadoras já têm a solução para o fosso aberto no seu conhecimento: o relançamento da obra em disco de vinil 180g, com todos os ruídos de estática a que você tem direito. Sim, um dos poucos pontos fracos do longplay virou uma virtude. 

Outra razão acordada entre alguns “especialistas” é que a experiência estética através dos arquivos digitais é severamente prejudicada pela falta de capas e encartes. É um argumento que desqualifica toda música gravada até 1940, período em que surgiram as primeiras capas de discos. Tiro no pé. Sem desmerecer nomes como Egeu Laus e Elifas Andreato que criaram um capítulo a parte na história da arte brasileira com suas capas de discos, a música ainda seria a mesma sem eles. 
Em 2004, Athur Dapieve escreveu em sua coluna no O Globo que:


“Enquanto existirem pessoas, ouvidos, arte, vida, os terráqueos continuarão a comprar novas versões do “Álbum Branco”, dos Beatles(...) Nada é definitivo: todos, ouvintes e suportes sonoros, encontram-se sempre na iminência de passar deste para melhor...”


O dilema sobre a legitimidade da audição musical não é novo. No início do século XX o compositor John Philip de Souza foi um dos primeiros a preconizar a morte da música. Sentenciou que com o advento das músicas gravadas, o ofício de artista da música chegaria ao fim. Que razão haveriam de existir, se agora poderíamos escutar a mesma música sempre que quiséssemos? E que função teriam os cafés e teatros? Ambos eram espaços frequentados para a apreciação artística. Para Souza, a função social e aglutinadora da música estava seriamente ameaçada. Havia ainda outra questão embutida ali. A fidelidade do som (nesse aspecto seu argumento era muito pertinente). Como absorver de forma plena a intenção artística do músico em gravações tão aquém da sonoridade obtida pela audição in loco? Para qualquer purista que se prezasse, o futuro era sombrio e pessimista. Estava decretado o fim da música antes mesmo dela surgir como conhecemos. 

Curioso como em meio à discussão sobre o tamanho da capa, formato da onda e taxas de compressão, pouco se discute o caráter agregador da música. Claro que não. Quanto mais individual for a experiência de audição, maior é a possibilidade de se vender mais cópias. Afinal, todo disco traz nalgum lugar da contracapa: “É proibido reproduzir publicamente esta obra”.

Como podemos então defender o disco de vinil em detrimento dos formatos digitais? Numa perspectiva mais purista, ambas são formas de encaixotamento e degradação da arte. Penso nos cantadores repentistas. Que sentido faz dentro de um estúdio, se sua arte é construída justamente a partir da sua reação ao ambiente? O suporte não nos traz muita coisa além de um arremedo da arte original. A função do formato deveria ser a de simples abrigo da memória artística, e não a arte em si.

Outra coisa que li de especialistas é que o individualismo do fone de ouvido havia arruinado a forma como experimentamos a música. Que ninguém mais conversava sobre música. Dentre exemplos que pululam todos os dias na internet, gosto muito de citar um cidadão de codinome KingCake. Em 2010 ele disponibilizou num blog, o áudio de mais de 100 álbuns da extinta gravadora de jazz Xanadu Records. Um verdadeiro tesouro. Desconheço uma forma mais desapegada de dialogar e difundir conhecimento. As obras estão lá há um clique, com um campo para você escrever um comentário e iniciar uma discussão sobre o disco com outras pessoas do mundo.



Longe de mim fazer coro contra os acervos. Para mim todo colecionista é um herói em luta perene e ingrata. O que me parece inadmissível é colocar recortes de plástico e papel acima do conteúdo que guardam.

Assisti em meados de 2008 uma apresentação do compositor Moska, que comentou impressionado o fato de ter visto um vídeo dele no youtube, cantando uma música que iria entrar em seu próximo disco. Ele fez uma pausa, deu de ombros e disse: “Finalmente a música está livre!”.

Parece que John Phillip de Souza pode finalmente descansar.

8 comentários:

Roberto Félix disse...

Roberto escreveu: "Um belo texto do Rogério, parabéns ao autor! Essa experiência da música individualizada, através dos iPods/iPhones estragam a experiência do compartilhamento da bagagem musical com a patota. Salvo engano, estraga até uma seleção, como a Brasileira, em que todos os jogadores na chegada ao estádio estão compenetrados com seus fones de ouvidos de cores berrantes e gosto duvidoso. E aquela união do grupo, construída na roda de samba do ônibus se desfaz na solitude e na individualização do seu iQualquercoisa."

Rogério disse...

Valeu, Ômi da meia noite!

Grato aos meus editores Sarah e Marvioli, que aproximam da Lingua Portuguesa a bagunça da minha cabeça!

ALEX BRAVO disse...

ROGERIO ,MEU OUVIDO SE ACOSTUMO A ESCUTAR LP´S EM APARELHOS DE ALTA FIDELIDADE (EU TRABALHEI EN ESTUDIOS DE TV ) E JÁ FAZ ALGÚM TEMPO,QUE NÃO SINTO A GOSTOSA SENSAÇÃO DE FECHAR OS OLHOS E SENTIRME ENFRENTE Á BANDA.ESE TAL DE MP3 DEIXOU TUDO ACHATADO, TEMPO ATRAS AINDA SE USABA O CD (ORIGINAL)QUE DEPENDENDO DA GRAVADORA ,A QUALIDADE ERA MUITO BOA ,LEMBRO UMA VEZ QUE ESTABA EM TUA RESIDÉNCIA, TU COLOCASTE UM COMPACT,E EU TE COMENTEI: "PARECE QUE A BANDA ESTA NA SALA!",O SOM DAS CORDAS SENDO "ACARICIADAS" NA MUDANÇA DE UMA NOTA PRA OUTRA...BICHO...FOI DE ARREPIAR. NA REALIDADE, ESTOU COMENTANDO TEU TEXTO, PARA MANIFESTAR A "
SEDE" QUE MEUS OUVIDOS ESTÃO SENTINDO DE ESCUTAR MÚSICA COM QUALIDADE...E DE PREFERENCIA "DE" QUALIDADE !VALEU ROGERIO !

Rogério disse...

Meu querido amigo Ar-rrrentino.
Você realmente tem as “ôiças” privilegiadas e eu já pude comprovar isso.

Minha vontade de escrever esse texto surgiu de quando frequentava fóruns de discussão de colecionadores de discos onde alguns deles defendiam que ouvir um álbum em mp3 era uma experiência estética inválida. Interpretei isso como uma arrogância tremenda. Nunca tive um álbum do Nelson Cavaquinho, o que não me impediu de tremer diante daquelas letras perturbadoramente lindas.

É claro que cada suporte terá sua peculiaridade, o que não significa que ela defina a legitimidade da sua apreciação.

Eu jamais diria que assistir O Poderoso Chefão no cinema ou na tela do celular seja a mesma coisa. Mas quem viu no celular pode rir, chorar e interpretar a obra igualmente.

Grande abraço do Lama!

Wagner Costa Viana disse...

Grande Lama, Obrigado pelo excelente texto.

Ouvi alguns generosos encontros eternizados em uma mídia, como “Rafael Rabello e Dino 7 cordas”, “Trio madeira”, esse último tivemos a oportunidade de apreciar juntos e ao vivo, percebendo o quanto é melhor a música crua, com o trastejo das cordas se harmonizando com a respiração do músico.
É difícil encontrar satisfação semelhante. Tive a oportunidade de assistir e ouvir o Marco Façanha (Violonista cearense), logo que retornou de um período de estudo fora do brasil, interpretando grandes mestres do choro e da música clássica, para uma plateia pequena, que presenciou um hiato criado na relação dos presentes com o universo e que não ficou gravado em nenhum formato (até onde sei), onde a única forma de reprodução é a troca da experiência vivenciada pelos poucos “predestinados”.
Talvez seja essa falta de pureza e alguns êxtases de experiência já vivenciados, que me desestimule tanto em ouvir coisas novas. Não me adaptei a geração do Mp3..4..5..6.sei lá onde já chegou.

Rogério disse...

É, camarada, você foi além do que propus no texto. Você está mais pra um discípulo do John Phillip! Admiro sua escolha. Ela é muito dolorosa e to longe de querer te acompanhar nela.
Talvez o Teatro seja a arte que mais se aproxima do seu anseio. Não há como alugar uma peça na locadora. A experiência é inevitavelmente "téti a téti", e não to minimamente disposto a abrir mão de Villa Lobos só pq ele morreu antes que eu chegasse por aqui!

Abração!

Sidney disse...

Caraca, que texto massa!! Entrava tranquilo em qualquer revista especializada!
Sei nem por onde começar.
Bom vamos lá: concordo com você, nunca entendi esse purismo com os vinis e sua estática, pra mim aquilo é chiado mesmo. Por outro lado, há perda de qualidade sim, na compressão digital. Mas aí, depende da compressão. Eu não consigo ouvir nada abaixo de 320kbps.
A questão da capa e encarte me faz falta sim, mas aí não sei dizer se é análise imparcial ou pura nostalgia. Mas o que me faz falta mesmo é tempo infinito para ouvir tudo o que eu gostaria!!!
Manda mais, lama!! (que virgula importante, hein??)

marvioli disse...

Rogério foi pressionado. Escreverá mais textos para o Diumtudo.