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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

John Lennon e Yoko Ono por Pedro Alexandre Sanches


Por causa da mulher



Discos de John Lennon são reeditados 30 anos após sua morte. Mas falta destacar
a presença de Yoko Ono no trabalho do artista pós-Beatles.
Ela era uma bruxa. Ele era um menino que vivia sob a guarda da bruxa. O menino era um dos homens mais famosos do mundo. A bruxa era apenas uma bruxa. O mínimo que a bruxa fez para desmoralizar toda a humanidade foi separar o menino de outros três meninos que formavam com ele um conjunto chamado The Beatles. A fábula do intenso casal formado por John Lennon (1940-1980) e Yoko Ono (hoje, com 77 anos) foi contada inúmeras vezes com essa entonação, e a brincadeira de mocinho e bandida não tem hora para acabar.
No ano em que John faria 70 anos, a filial brasileira da gravadora EMI o homenageia pela enésima vez com uma reedição especial da coleção completa de canções criadas pelo artista entre a separação dos Beatles, em 1970, e seu assassinato, dez anos depois. Foram oito álbuns, três deles assinados em dupla por John & Yoko (inclusive um póstumo, de 1984). Mas a presença de Yoko neles é apenas um detalhe, a acreditar no modo como a história costuma ser contada.
No mesmo intervalo, a esposa de -John concebeu cinco discos por conta própria (um deles, de 1974, cancelado e só reconstituído e publicado em 1997). O mundo se interessou por eles muito menos do que pelos LPs do marido, e o Brasil menos ainda. Não há nenhum título-solo dela em catálogo por aqui.
A “bruxa” nasceu no Japão e migrou para os Estados Unidos, na esteira do bombardeio de seu país natal pela futura pátria adotiva. Em Nova York, desenvolveu- carreira de artista plástica conceitual, ligada ao movimento Fluxus. O “menino” britânico havia sido estudante de arte antes de virar mito vivo do pop-rock, e também por isso a personalidade vanguardista de Yoko o fascinou. A história que ambos contaram, juntos e separados, é muito mais fascinante e complexa que o surrado brinquedo maniqueísta de índia e caubói.
Com Yoko, John a princípio mergulhou em experimentalismos, em três discos inaudíveis, mas que o ajudavam a se distanciar do pop “goma de mascar” dos Beatles. Two Virgins (1968), Living with the Lions e Wedding Album (1969) eram só barulheira e provocação. Recém-casados, eles transformaram a lua de mel em performance. Convocaram a imprensa para compartilhar os bed-ins em que discorriam sobre temas tão óbvios quanto indigestos para a sociedade, como paz mundial, liberdade sexual- e igualdade racial. O primeiro passo pós-Beatles foi a construção de dois discos gêmeos, ambos embalados com a mesma foto de capa, do casal repousando embaixo de uma árvore.
John Lennon/Plastic Ono Band era o disco do “herói”, pop, melodioso, repleto de mensagens iradas sobre orfandade (Mother), guerra de classes sociais (Working Class Hero) e rebelião antirreligiosa (God).  Não acredito em i-ching/ não acredito na Bíblia/ (…) não acredito nos Beatles/ só acredito em mim/ em Yoko e eu, desafiava God.
Yoko Ono/Plastic Ono Band era o disco da “vilã”, barulhento, vazio de letras e repleto de guinchos, tosses e gemidos. “Empurrei um carrinho de bebê vazio por toda a cidade”, repetia à exaustão em Greenfield Morning I Pushed an Empty Baby Carriage All Over the City, em alusão aos abortos que fizera e à filha Kyoko, nascida em 1963 e tirada dela pelo pai, sob a justificativa do uso de drogas por Yoko e John.
A cruzada pacifista rendeu a John seu ápice como artista-solo, com o álbum Imagine (1971). À parte a faixa-título, era um disco dominado pela raiva, a mesma que Yoko expelia, de modo bem mais cru, em Fly, outro álbum (duplo, desta vez) forrado de gritos e ruídos corporais.
John, em How Do You Sleep?, expurgava sem meias palavras seus ressentimentos em relação ao ex-parceiro Paul McCartney: tinham razão quando disseram que você estava morto/ () a única coisa que você fez foi Yesterday/ (…) um rosto bonito pode durar um ano ou dois. Yoko, por sua vez, endereçava (res)sentimentos sombrios ao marido, em Mrs. Lennon: o marido John estendeu a mão para sua esposa/ e de repente ele descobre que não tem mãos.
Viria então o primeiro e mais bem–sucedido esforço conjunto. Some Time in New York (1972) era um legítimo álbum de protesto, no qual o casal abraçava radicalmente a militância política contra o racismo e o sexismo. Na abertura, John abraçava por Yoko o ataque à misoginia. Se ela não age como escrava, dizemos que não nos ama/ se é verdadeira, dizemos que está tentando ser um homem, afirmava Woman Is the Nigger of the World, que espelhava de propósito (des)igualdade de gênero e de sexo. Se não acredita em mim, olhe a mulher que está com você, desferia o golpe final. Yoko vinha em seguida com Sister o Sisters, uma conclamação à união feminina: Irmãs, irmãs/ vamos nos levantar agora mesmo/ nunca é tarde demais para começar do começo. O disco seguia nessa pegada, como um diálogo entre marido e esposa.
Sete anos mais velha que seu “menino”, a mulher evidenciava a superioridade- intelectual e conceitual sobre ele na faixa Born in a Prison, que a sociedade- adoradora dos Beatles e de seu espólio não estava preparada para enfrentar: Um espelho torna-se lâmina quando se quebra. Quem não olha para dentro de si fica tentado a agredir o outro, ela queria dizer. Em Milk and Honey, disco preparado por Yoko em 1984 com sobras de estúdio da dupla, o “menino” admite que não compreendeu a lição. Sempre que olho no espelho/ não vejo ninguém, ele canta em I Don’t Wanna Face It.
As canções de protesto de Some Time in New York fortaleceram a mulher, que conceberia em 1973 os trabalhos mais importantes de sua carreira musical, o duplo (e em parte experimental) Approximately Infinite Universe e o ferozmente feminista (e sutilmente pop) Feeling the Space. Enquanto isso, John lançava Mind Games, no qual inventava um país- imaginário, Nutopia, sem territórios, passaportes ou leis. O manifesto pró-Nutopia vinha assinado pelo casal: John Ono Lennon e Yoko Ono Lennon.
Na enxurrada de composições de Yoko, ela chamava para si, em Want My Love to Rest Tonight, responsabilidades pelo machismo: Irmãs, não culpem demais o meu homem/ (…) ele foi educado por nós, mulheres/ (…) ele foi ensinado pela mãe a nunca confiar em garotas/ foi ensinado pelo pai a nunca derramar lágrimas. Em Woman of Salem, atraía para si, enfim, o rótulo de “bruxa”: “Bruxas devem ser enforcadas”. Em Woman Power, assumia o levante feminista: Você sabe que algum dia terá de pagar, homem?/ (…) não se iluda, eu sou a presidente, está ouvindo?
Em What a Bastard the World Is, voltava-se contra o cônjuge (seu tolo/ seu porco/ bastardo/ escória do mundo) e contra o sexo oposto em geral (todas nós vivemos à mercê da sociedade de homens/ que pensam que os desejos deles são nossas necessidades). Em Men, Men, Men, brincava de tratar homens como objetos, e concluía: “Você pode sair da caixa agora”. Ouvida pela única vez naqueles discos, a voz de John trazia a última palavra: “Sim, querida”.
A partir daí, o casal se separaria por um ano e meio. O disco A Story, de Yoko, seria gravado e arquivado. Uma das faixas chamava-se Yes, I’m a Witch (Sim, eu sou uma bruxa/ Sim, eu sou uma puta). Outra era She Gets Down on Her Knees (Ela se ajoelha para subir na vida/ é a única coisa que ela faz bem). John ainda lançaria Walls and Bridges (1974) e um LP de covers de clássicos do rock (Rock’n’Roll, 1975). Reatados, conservariam cinco anos de silêncio musical. E fariam um acordo de inversão de papéis: Yoko cuidaria dos negócios de John, e ele ficaria em casa, criando o filho único de ambos, Sean, nascido em 1975.
A volta em dupla, com Double Fantasy (1980), tornava público o desgaste do casal e indicava: De algum modo os fios se cruzaram/ a comunicação se perdeu”, lastimava-se John em I’m Losing You. Yoko não parecia melhor. Estou sangrando por dentro, afirmava na de resto luminosa Kiss Kiss Kiss. Em Beautiful Boys, distribuía conselhos algo fantasmagóricos a seus dois meninos, o de 4 anos e o de 40: Não tenham medo de ir ao inferno e voltar.
Quando John foi assassinado à porta do edifício Dakota, trazia consigo a gravação que o casal finalizara naquele dia. Era Walking on Thin Ice, de Yoko. Andando em gelo fino/ eu pago o preço, dizia a formidável canção pop que ela só lançaria em 1981, e que, como de praxe, a maioria absoluta do mundo deixaria de ouvir. Após a morte do marido, Yoko lançou dois discos dominados por sentimentos de dor, depressão, culpa. A partir de Starpeace (1985), retomou enfoques mais otimistas, reaproximou-se das artes plásticas, influenciou artistas mais jovens como Beck, Peaches e Cat Power.
Mantém-se produtiva e, neste 2010, lançou o álbum Between My Head and the Sky, que a maioria do mundo não ouviu nem o Brasil se interessou em lançar. Você não as ouve cantando canções/ você não as vê vivendo a vida, Yoko Ono referia-se às mulheres em Woman Power, 37 anos atrás. Você pode não crer em bruxas, mas que elas existem, existem. E vivem a vida, e cantam, e compõem.

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