Por - Sandra Helena de Souza - Professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza - souza.sandraelena@gmail.com
Por volta de 60 a.C um escândalo ocorrido em Roma envolveu o homem mais poderoso do mundo, Julio César, sua mulher Pompeia e um nobre pretendente, Clódio. O caso chegou aos tribunais e o próprio César teve de prestar esclarecimentos já que se punha em suspeição a honra de sua mulher.
Ele admitiu publicamente que não a considerava responsável pela investida de que era alvo e a julgou inocente. Clódio foi absolvido, mas Pompeia não se livrou do ostracismo e do repúdio de César.
Quando indagado quanto à aparente contradição de sua conduta, ao defender a mulher no tribunal e condená-la em casa, ele teria afirmado: “Não basta que a mulher de César seja honrada, é preciso que sequer seja suspeita”.
Essa frase varou os séculos como um vaticínio e encontrou em Maquiavel o rigor científico para decifrá-la, na famosa carta a Lourenço de Médici. Trata-se da moralidade específica da esfera do poder: o privilégio de governar custa um preço que pagam imperadores, reis, príncipes, governadores, quaisquer homens que detenham poder institucional sobre outros e queiram destes estima e obediência respeitosa. Sua vida privada é pública, não por opção, mas por condição mesma do poder de governar.
Nada mais privado que as escolhas eróticas. Ao longo do tempo, homens e mulheres do poder tiveram de aceitar a lei, casando-se contra sua vontade e afetos ou mantendo-se castos em nome da manutenção de seu poder.
Nas circunstâncias da cultura das moralidades, governantes são o exemplo óptimum de como os homens comuns devem agir em caso de conflito insuperável de interesses. No calor da campanha presidencial, o candidato Obama declarou: “já traí e também fui traído”. Tentava imunizar-se contra o puritanismo da sociedade americana. Ante a invasão de sua privacidade a ofereceu de bandeja neutralizando escândalos presumíveis.
Há culturas em que a incompetência administrativa leva os governantes ao suicídio, mesmo que eles não tenham sido diretamente responsáveis pelos desmandos. Enfim, o poder exige uma resposta que o homem comum não é obrigado a dar se não quiser. Não se trata de parecer honesto/ilibado sem sê-lo, como muitos gostam de entender a frase imperial, mas sim de apesar de sê-lo estar sob obrigação constante de parecê-lo, eliminando suspeições que o poriam na condição de piada de salão.
Isso me veio à mente a propósito do episódio do jatinho Grendene e das férias do governador. Em nossa cultura não é certamente o affaire erótico que põe dúvidas sobre a honestidade do poder. Isso é coisa de norte-americano.
Nosso Clódio é outro: o trânsito cruzado que leva de vícios públicos a benefícios privados e vice-versa. O silêncio do governador sobre o que ele diz ser sua vida privada, de cidadão comum em férias, cabe bem em quem não goza de suas prerrogativas, mas não resiste a um exame acurado de ética pública. Ele certamente sabe disso. E sabe mais.
Acontece que em democracia, César somos todos nós. Nossa Assembleia decidiu quem somos. E o preço que aceitamos pagar, em conjunto. Afinal como disse o outro: a César o que é de César.
Publicado em O POVO - dia 23 de março de 2011
Um comentário:
Sandrinha sempre alfinetando com elegância.
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