O número 938 da Santos Dumont, morada da família de Manuel Ricardo de Holanda no tempo em que se contava a história de uma verdejante e arejada Aldeota, passou por transformações, assim como o próprio bairro. De novas linhas fronteiriças, a Aldeota de hoje se assemelha ao Centro da Cidade: comércio, serviços, órgãos públicos. Ensurdece de tanto barulho, cega de tanta poeira, é prática como o Centro já o era, quando estimulou a saída das famílias mais abastadas rumo a um inexplorado leste da Capital. E assim como o número 938: de casa de família rica, é hoje um restaurante self-service para quem trabalha nos arredores, comporta cerca de 200 pessoas e aceita Hipercard.
“É bom trabalhar por aqui porque é perto de tudo”, confirma Felipe Lima, 22, gerente do restaurante. Prefere aquela sede às outras. “A nova centralidade comercial e de serviços de Fortaleza está na Aldeota, que se consolidou com os shoppings”, conta o professor de geografia José Borzacchiello da Silva. Na dança orquestrada dos bairros, nessa reorganização social e simbólica dos espaços, a Aldeota perdeu lugar, segundo Borzacchiello, em prestígio e importância entre os ricos de Fortaleza, para o Meireles. “O Shopping Aldeota tem esse nome, mas quem mora ali diz que mora no Meireles. A Praça Portugal é Meireles”, delimita Borzacchiello.
Ao contrário do que acontecia naquela época. “Dizia-se até que os restaurantes lá não davam sorte porque as pessoas queriam sair do bairro para jantar fora”, conta o colunista Lúcio Brasileiro. De tanta pompa e circunstância, a imagem do bairro não se desfez, apesar de já não ostentar o luxo de outrora. “Na Aldeota, só tem gente besta”, sentenciou o Evandro, que vende coco e assessórios para celular, na esquina da Santos Dumont com Desembargador Moreira. “Rico só quer tomar o coco inteiro. Quando é mais pobre toma no copo”. Medo de alteração na água do coco, quem sabe. “Eles pensam que eu mexo. Quem mexe é no Centro. No Centro nem eu tenho coragem de tomar”.
Para Romeu Duarte, arquiteto e ex-titular do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-CE), a primeira pincelada desse quadro de mudanças veio com a derrubada do Palacete do Plácido, no início dos anos 1970. “Essa é a história da Aldeota: inicia-se com a demolição do castelo do Plácido e depois a demolição de outras casas. Muitos dos exemplares arbóreos foram mutilados”. Romeu chama atenção para outro dado: foi na Aldeota onde se concretizou o maior número de construções de arquitetos cearenses. Lembrando do episódio da derrubada das árvores, o arquiteto diz ser urgente a confecção de um inventário de arquitetura – “tanto do construído quanto do ambiental. Seria interessante se ter o valor histórico, valor artístico de todas essas construções”.
Decadência e elegância
Dona Silvana Alves Costa acha ótimo o crescimento do bairro, a popularização do comércio. Aos 90 anos, desde 1984 dentro do Center Um administrando a lojinha que leva seu nome em neon na entrada, ela se diz satisfeita. “Esse shopping melhorou muito. Quando eu cheguei aqui, tinha uma feira de verduras onde hoje é o Banco do Brasil”, lembra. Hoje Aldeota é nome mercadinho, auto-escola e shopping center. Ano passado foi até nome de revista. “O nome veio como uma sátira, a gente queria brincar com essa coisa do bairro que tem a área mais chique de Fortaleza. Para periferia, a Aldeota é grandiosa, onde tudo acontece. E não é”, especificou Ricardo Lisboa, editor da extinta publicação.
E assim, histórias foram registradas e contadas. Como a do livro Aldeota, de Jáder de Carvalho. Até hoje o livro é visto com ressalvas pela elite da Cidade. A ficção chega muito perto da realidade quando detalha a construção da fortuna de muitas famílias ricas da Aldeota. “Em Aldeota prestei o maior serviço à moral política e à moral social do Estado, trazendo aos olhos do povo, do governo e das autoridades, os sonegadores de impostos, os ladrões, os contrabandistas que numa terra paupérrima, de economia que é preciso se ver com binóculo, de tão pequena que é, dar lugar à existência de um bairro aristocrático como é a Aldeota”, disse o autor à sua biógrafa Ângela Barros Leal.
No livro, essas histórias são conhecidas através dos olhos de Catarina Simões de Oliveira, esposa do protagonista Chico. Filha de portugueses, nascida em terras amazonenses, Catá convive harmoniosamente com os amigos contrabandistas do esposo. Até que um dia cai em si e percebe o que está à sua volta. “Referem-se à marca dos carros da família e no grande número de banheiros e privadas das suas principescas residências. O jornalista Djalma, nosso amigo, explica assim este fato: a ascensão econômica se processou com tanta rapidez que não deu tempo ao polimento do espírito”. (Júlia Lopes)
Jornal O Povo - http://migre.me/48MOF
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