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terça-feira, 19 de julho de 2011

Chico Buarque de Hollanda era Aurora era Amélio era Aurélia…

Por Pedro Alexandre Sanches

O narrador perdido no tempo-espaço dos livros Estorvo(1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite Derramado (2009) invadiu de vez a música popular brasileira. E não parece ser mais um personagem de ficção, pois o primeiro disco de canções inéditas de Chico Buarque em cinco anos se chama, simples e explicitamente, Chico.

Aos 67 anos, o maior herói da politizada geração 1960 da MPB parece estar morto, ou no mínimo hibernante atrás dos sonhos, delírios e pesadelos existenciais enfileirados em sua fase literário-jobiniana, burilada desde no mínimo o disco As Cidades, de 1998. De “Vai Passar” (1984) para cá, foi desaparecendo aos poucos o Chico engajado e combativo de Construção(1971).

O lugar vago vai sendo ocupado por uma versão desencantada e nada ingênua do Chico de “A Banda” (1966), o qual em público o Chico de Chicoparadoxalmente demonstra desgostar e desacreditar. No novo CD, parece ser alguém que vê a banda passar pela janela o narrador de, por exemplo, “Rubato”, “Barafunda”, “Querido Diário” ou “Tipo um Baião”.

Chico segue conciso em dez composições curtas e pouco mais de 30 minutos de duração, na seguinte sequência:

“Querido Diário” – Mirando à distância “Construção” ou “Cotidiano” (ambas de 1971), o narrador anda pelas ruas, recolhe um cão, alucina “amar uma mulher sem orifício”, pensa em religião, cogita em negativo violentar uma mulher (“não bato nela nem com uma flor”) e constata, ambíguo: “Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ mas eu não quebro porque sou macio”.

“Rubato” (parceria com Jorge Helder) – Os jogos de espelhos dos romances viram canção, numa levada marcial que deixa um perfume de “A Banda” no ar. O narrador-compositor canta seu amor por uma Aurora, é surrupiado por um segundo compositor que passa a cantar para uma Amora, e, “Rubato” (“roubado”, em italiano), termina em poder de um terceiro que canta para uma Teodora. Se os três se chamarem Chico, a impressão é de que Crise de Identidade é o nome real da musa inspiradora.

“Essa Pequena” – O tema é o amor de um homem maduro por uma mulher jovem: “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora”. Vão longe os tempos nacionalistas, emepebistas, anti-iê-iê-iê e antitropicalistas, como denota a matreira citação em inglês, “fique à vontade, eu digo, take your time”. “Sinto que ainda vou penar com essa pequena”, declama o narrador, não se sabe se realista ou pessimista.

“Tipo um Baião” – Homenagem enviesada ao “rei do baião” Luiz Gonzaga, destronado no final dos anos 50 pela bossa nova dos pais buarquianos Tom Jobim e João Gilberto. A amada “infla” e “esmaga” o coração do narrador, “igual que nem fole de acordeão/ tipo assim num baião do Gonzaga”. Há 50 anos, a bossa nova exilou a sanfona gonzaguiana da música popular brasileira; o “baião-canção” (segundo o autor) “Tipo um Baião” é levado ao piano.

“Se Eu Soubesse” – É interpretada em dueto com a jovem cantora paranaenseThaís Gulin, que os tabloides de fofoca dizem ser namorada do autor. A parte não-falada do arranjo diz, ensolarada, o que as palavras do resto todo do CD elegem não afirmar: em “lararás” e “liriris” bem-humorados, arejados, felizes, Thaís e Chico quase fazem esquecer os versos palavrosos da chanson.

“Sem Você 2” – O título estabelece conexão com “Sem Você”, de Tom Jobim eVinicius de Moraes, lançada em 1959 em interpretações de Lenita Bruno e deSylvia Telles. À época, a vertente barquinho-violão-praia, sal-sol-(zona)sul, da bossa nova ainda não era hegemônica, e “Sem Você” dialogava com a canção de fossa dos anos 50, entre termos como “sofrimento”, “desespero” e “solidão”. “Sem você é o fim do show”, suaviza (mas não muito) o narrador. “Sem você o tempo é todo meu/ posso até ver o futebol”, graceja, beliscando algum otimismo.

“Sou Eu” (parceria com Ivan Lins) – A voz à antiga do sambista Wilson das Neves compartilha com Chico a historieta algo feminista, algo misógina, sobre uma namorada que pinta e borda nos bailes da vida. “Quem é que carrega a moça para casa?/ sou eu”, constatam, uníssonos, Chico e Wilson.

“Nina” – Em referência “noir” à Ninotchka de Greta Garbo, a protagonista da canção vaga pelos sonhos do narrador-sonhador-delirador. “Nina adora viajar, mas não se atreve/ num país distante como o meu”, diz o narrador, sem explicitar se seu país é o Brasil ou um país de sonhos (e pesadelos) como os do desterrado romance Budapeste.

“Barafunda” – A penúltima faixa inicia se espelhando à segunda: “Era Aurora/ não, era Aurélia/ ou era Ariela/ não me lembro agora”. Nomes, pessoas e lugares se embaralham na mente confusa do narrador, mas não a ponto de chegar à Amélia do samba de Ataulfo Alves, ou à Maria Amélia mãe do autor, morta no ano passado, aos 100 anos. “Salve este samba antes que o esquecimento baixe seu manto/ seu manto cinzento”, canta o autor, nublado, no instante do CD em que o Chico-compositor mais se aproxima do Chico-escritor.

“Sinhá” (parceria e dueto com João Bosco) – Adotando tom de afro-samba mais à maneira do parceiro João Bosco que do bossa-novista Baden Powell, Chico termina o disco em seu ápice, na canção mais intensa e confessional, irmã do romance Leite Derramado. O narrador é um escravo no tronco, açoitado por ter espichado os olhos para sinhá – o que ele nega (“por que talhar meu corpo?/ eu não olhei sinhá”), mas ao final confirma.

A última estrofe da canção “Sinhá” (e do disco Chico) embaralha de vez a ficção e a vida real do artista de olhos claros, herdeiro obediente dos Buarque de Hollanda e da tradição nacional-emepebista, que se tornou sogro de Carlinhos Brown e avô de netos sarará: “E assim vai se encerrar/ o conto de um cantor/ com voz de pelourinho/ e ares de senhor/ cantor atormentado/ herdeiro sarará/ do nome e do renome/ de um feroz senhor de engenho/ e das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou sinhá”.

(Texto publicado originalmente no iG Cultura.)

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