Quem sou eu

Minha foto
Agrônomo, com interesses em música e política

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Lutas de classe entre as rimas

Por Braulio Tavares


Já falei aqui nestas páginas sobre os conceitos de rima rica e rima pobre. Qualquer manual poético dá explicações sobre esses dois tipos. Minha única ressalva é que ela sugere um preconceito de classe social, e passa, com isso, a ideia falsa de que é preciso deixar de ser pobre e ficar rico de qualquer maneira. Sugere que é preciso evitar a todo custo as rimas pobres e encher o poema de rimas ricas de cima a baixo. Não é bem assim.

Eu chamaria essas rimas de fáceis e difíceis. A rima fácil (ou pobre) exige um mínimo de esforço ou de imaginação. A mais fácil de todas seria rimar uma palavra com ela mesma:

Quando eu estou com saudade
lembro os olhos do meu bem
pois não sei onde ela anda,
não sei se ela me quer bem.
 

Rimar assim é o máximo da preguiça, embora (a poesia é um mundo vasto) deva existir algum exemplo em que isto foi empregado com proveito poético.

O segundo tipo de rima fácil mais à mão é rimar uma palavra com outra palavra derivada dela mesma. Não existe muito mérito poético em rimar "urbano" com "suburbano". O poeta principiante faz isso com frequência, porque depois de escrever a primeira palavra ele começa a remexer as gavetas da memória procurando uma palavra que termine num som parecido, e em geral a primeira que encontra é justamente um derivado da palavra que já tinha.

O propósito da poesia é evitar sempre as rimas pobres e só usar rimas ricas? De jeito nenhum. A rima é um efeito, e como todo efeito deve ser dosado, deve obedecer a uma economia. Quando as rimas começam a chamar excessivamente a atenção, por sua "pobreza" ou sua "riqueza", elas interferem na leitura, mostram que foram colocadas ali ou por preguiça ou por exibicionismo. A rima é uma repetição de sons que dá uma impressão de harmonia, de simetria, às vezes de surpresa (quando a rima surge num lugar inesperado, ou com uma palavra inesperada), mas tudo isso deve ser meio que em segundo plano, porque a rima não é o solista da orquestra, ela apenas faz parte da seção de ritmo. Está ali para acompanhar e enriquecer, não para chamar a atenção sobre si mesma, a não ser em momentos especiais.

Quando usar a rima fácil
Palavras que terminam com o mesmo sufixo são um caso limítrofe de rima fácil. Por mim seu uso não chega a ser um crime, mas se usadas o tempo inteiro comprometem o poeta. O grande vilão neste caso é o conjunto dos advérbios terminados em "mente": atualmente, possivelmente, constantemente, certamente, antigamente...

A lista é grande, mas deve ser acessada com parcimônia. O mesmo se dá com adjetivos que terminam todos da mesma maneira: gracioso, orgulhoso, perigoso, custoso... 

Ou com substantivos de terminação igual: frequên­cia, excelência, insistência, paciência... 

E com formações verbais: derrotado, exaltado, empurrado... andando, falando, pensando...

Rimas assim não exigem criatividade. São rimas que devem servir de argamassa às demais, servir de elenco de apoio, sem chamar muito a atenção para si, ajudando a manter o fluxo. Mas se no meio delas não aparece de vez em quando uma rima um pouco mais difícil, ou rica, o leitor só percebe a presença delas; e, mesmo inconscientemente, torce o nariz para a escassez de inspiração do poeta.


O desafio da rima difícil
A rima difícil ou rica pode vir, por exemplo, quando em vez de rimar dois verbos ("amar" e "cantar"; etc.) rimamos um verbo e um substantivo ("amar" e "luar"). Em lugar de rimar "formosa" (adjetivo) com "gostosa" (adjetivo) podemos rimar com "rosa" ou "prosa" (substantivos). Em vez de rimar "perigo" (substantivo) com "amigo" (substantivo) podemos rimar com "antigo" (adjetivo). Pode parecer um excesso de capricho, mas a verdade é que muitas vezes o poeta vai escrevendo sem ter a mínima ideia do que fazer em seguida, e estabelecer critérios desse tipo podem ajudá-lo a pensar no que dizer no verso seguinte. 

O uso de nomes próprios e comuns
Rimar nomes comuns e nomes próprios também traz uma dose maior de informação e de imprevisibilidade ao poema. Uma coisa é rimar "deserto" com "certo", "coberto"; outra é rimar a mesma palavra com "Roberto".

O desafio, no caso, é o que sempre preside qualquer questão de rima: a palavra está sendo utilizada por causa do seu som, mas deve dar a impressão de que o foi por causa do seu sentido. Além disso, deve dar a impressão de que o poeta rimou involuntariamente (quando é justamente o contrário).  

O exemplo de Augusto dos Anjos
Um tipo de rima difícil, ou rica, que requer certa destreza é quando rimamos uma palavra com os sons de duas ou mais, ou com verbos acompanhados de pronomes oblíquos. Augusto dos Anjos (um dos poetas mais complicados e mais populares da literatura brasileira) era um mestre nesse tipo de rima. Em seus poemas encontramos "língua" rimando com "distingo-a", "estrelas" com "compreendê-las" (em As Cismas do Destino), entre outros achados.


http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12361

Nenhum comentário: