Por Rogério Lama
Algumas
pessoas deixam marcas tão indeléveis e impregnantes na linguagem
artística, que aqueles que nascem nas gerações seguintes e não
vivenciaram o impacto de suas criações, conseguem passar ilesos a
qualquer grau de arrebatamento. É uma letargia curiosa, pois denota
que se passou tanto tempo bebendo do ecos de suas criações, que
quando se ouve a fonte, é como se tivesse ouvido a vida toda, ou
como disseram Chico e Edu na Valsa Brasileira: “...chegando
assim, mil dias antes de te conhecer...”.
Sim, é possível que você passe pela vida sem ter posto um "Sgt. Peppers" ou um "Amoroso" no toca-discos, que ainda assim você terá ouvido muito dos Beatles e de João Gilberto.
Sim, é possível que você passe pela vida sem ter posto um "Sgt. Peppers" ou um "Amoroso" no toca-discos, que ainda assim você terá ouvido muito dos Beatles e de João Gilberto.
Perda de
tempo reivindicar a primazia do Rock aos Beach Boys, Stones ou Spooky
Tooth. Nem tampouco dizer que Orlando Silva e Mário Reis inventaram a
forma bossanovística de cantar, ou ainda que foram Garoto e Laurindo
de Almeida que forjaram o violão de João. Nenhum desses fez outra
coisa, que não exprimir a amalgama de suas experiências. O que
Beatles e João fizeram foi cristalizar definitivamente um formato.
Uma espécie de receita de bolo que vem sendo repetida há meio
século. Basta ouvir Long Way do Queen ou The Gnome do
Pink Floyd pra dizer: “Essa ai os Beatles se esqueceram de compor”.
Com o João não é diferente. Vide Paulinho da Viola, Chico Buarque
e João Donato.
Coitado de quem não gosta de João: ele estampa boa parte da música feita no Brasil desde que saiu do interior da Bahia rumo ao Rio de Janeiro.
Coitado de quem não gosta de João: ele estampa boa parte da música feita no Brasil desde que saiu do interior da Bahia rumo ao Rio de Janeiro.
João, por mais absurdo que pareça (e é), ainda é tachado de estrela. Logo ele que sempre priorizou a arte e os artistas. Gravou sambas de Herivelto Martins e Geraldo Pereira, num tempo em que o samba não gozava do status que tem hoje. Sua harmonia foi um tapa na excessiva verticalização que o samba vivia na época e além de tudo é o músico que mais respeitou o seu público em toda a nossa história.
Que razão ele teria para regravar seguidamente músicas como Chega de Saudade, senão pelo desespero de re-lapidar uma jóia para dar ao público uma música mais próxima possível do ideal platônico.
E o que dizer de suas reclamações em palco? O cara ensaia exaustivamente, assina um contrato onde, à exceção do cachê, tudo privilegia o público: ar condicionado não pode, amplificadores específicos, microfone AKG de modelo específico. Quem ganha com essas exigências? Acredite, são os que mais reclamam. Como ele mesmo disse “Os caras não lêem o contrato e eu é que me exponho”.
Há alguns anos, o grande Yamandu Costa disse que João era um gênio, mas não era violonista... João completa 80 anos em 2011 e ainda gera controvérsia, que é um traço bem típico de quem revira as coisas de ponta cabeça. Yamandu sabe o que é isso.
Ouvir
João continua sendo pra mim uma experiência lisérgica. Suas linhas
de melodia, ritmo e harmonia aparentemente independentes que se
tangenciam em momentos pré-determinados ainda dão aquele frio na
barriga de quem desce uma montanha russa.
Longa vida à João Gilberto e à música brasileira.
2 comentários:
Belo artigo/ensaio sobre João e a música...gostei da frase e do significado..."coitado de quem não gosta de João". Concordo inetiramente. Gosta mesmo sem saber como vc falou.
Parabéns,
Alfredo.
Será que joão é tudo isso mesmo?me parece que depois dele a arte de cantar foi desvalorizada,afinal sussurrar não é cantar.
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