Por Francisco Bosco
Não sou um historiador rigoroso do contemporâneo, mas sigo à risca o preceito do filósofo de estar no mundo ao modo de um cão: sempre atento, com as orelhas em pé. No campo da canção popular de hoje, minhas orelhas em pé captam em Romulo Fróes qualquer coisa que só existe nele. Antes de tudo deve-se ressalvar que, ao falar de Romulo, já desde o seu disco anterior, mas mais clara e sistematicamente nesse, deve-se falar de uma criação coletiva, a incluir, em seu núcleo central, Clima e Nuno Ramos, parceiros de outros carnavais, e agora Rodrigo Campos, cujos cavaquinho e violão estão no eixo da sonoridade conquistada nesse novo trabalho (além, é claro, dos demais músicos, todos inventivos: Guilherme Held na guitarra, Marcelo Cabral no baixo, Pedro ito na bateria e Thiago França no saxofone e ainda da contribuição muito forte da artista plástica Tatiana Blass, com suas obras-capas).
Em seu trabalho anterior, o disco duplo No chão sem o chão, Romulo apresentava uma primeira sessão, resultante de um processo seu de desterritorialização (desgrudar-se da "imagem de sambista" - mas não do samba - que se lhe colara), em que a forma canção era como que violentada, a relação nevrálgica entre letra e melodia sendo abruptamente invadida por um pensamento musical, não cancional, onde longos solos de guitarra deixavam a canção a ver navios. Na segunda sessão, reencontrava-se a forma canção, mas como uma espécie de síntese, já incorporada a conquista da primeira.
Havia já nesse(s) disco(s) anterior(es) a "qualquer coisa" que eu afirmei, acima, existir em Romulo e só nele. Mas em Um labirinto em cada pé isso reaparece de modo mais concentrado, refletido (dizendo e se dizendo), e com nova sonoridade. Quanto a essa última, se No chão sem o chão tinha uma pegada mais roqueira, agora, em Um labirinto em cada pé, os cavaquinhos e violões de Rodrigo Campos colocam uma variável nova - e surpreendente - na equação.
A "qualquer coisa" singular de Romulo passa decisivamente pelas letras que ele entoa. Daí a necessidade de se falar de uma criação coletiva, já que a grande maioria das canções são compostas por ele junto a Nuno Ramos e/ou Clima. Há nessas letras uma operação com o sentido que se aproxima mais de vertentes da literatura moderna do que de compositores de canção popular. Pois são letras que jogam com certa intransitividade da linguagem. Não poderiam estar mais distantes do senso comum, da expressão amorosa "sincera", das referências concretas e reconhecíveis, dos temas habituais, de certa transparência (suposta) das palavras em relação ao mundo, em suma, de um efeito geral de naturalidade que Luiz Tatit identifica ser uma das mais fortes marcas da canção popular. Opacas ou autoiluminadas, herméticas (são algo que não se vê) ou materiais (são tão somente o que são), elas se situam "além do impossível conteúdo", onde "tudo vem".
É certo que se pode falar de uma tradição de letras que jogam com o nonsense na música brasileira. Desde "Uva de caminhão" (não por acaso gravada por Romulo anteriormente), passando por Luis Melodia, pelo Caetano de "Qualquer coisa", pelos famigerados zuns de besouro de Djavan até chegar em Carlinhos Brown, para ficar só em alguns pontos dessa linhagem. Me parece, no entanto, que, nos casos citados acima, em geral o sem-sentido das letras responde a um imperativo da melodia, como se às palavras coubesse sobretudo a tarefa de servir à melodia, entranhando-se nela, abolindo-se nela, fazendo com que o plano semântico se anule, virando puro ritmo e imagem. Não é por acaso que os letristas do nonsense costumam ser antes de tudo músicos, homens-som, mais do que homens-palavra. Nas canções de Romulo, dá-se outra coisa. Não me parece que as palavras anulem-se (em favor da música), mas, pelo contrário, que elas se afirmam plenamente, como uma série própria, independentes da música, apesar de entrelaçadas com ela: um labirinto em cada pé. Não há, assim, uma dissociação entre letra e música; ao contrário, a relação aqui é necessária e enxuta (é isso a canção). Mas as letras não cessam de apontar para algo que não está na música, nem no mundo, mas em si mesmas.
Aqui eu deveria entrar numa análise mais detida, inoportuna para a função desse texto. Mas basta que se escute as palavras da canção "Varre e sai": cheia de verbos intransitivos ("no varre e sai/ desarrumei", "no varre sai/ já me virei/ já fui, voltei"), ou com função de; os próprios objetos diretos são indeterminados ("já fui , nem sei, alguém/ já tive alguém"); não se sabe direito do quê se está falando (um pouco como as letras oblíquas de Paulinho da Viola d'après Nuno Ramos); e é esse não saber mesmo que é afirmado, como um estranho manifesto sem conteúdo: "saber de nada é bom".
Eu poderia seguir demonstrando essa argumentação com muitos outros exemplos, mas não é o caso. Muito importante é enfatizar que toda essa estranheza não resulta em canções cerebrais, anêmicas, numa palavra, chatas. Ao contrário, essas canções estranhas têm um pé fincado na tradição rítmica e melódica brasileira, que aliás elas não cessam de evocar ("só faço samba", "boneco de piche", "ladeira da preguiça", "jardineira"). É assim que, apesar da estranheza das letras, ou por causa delas, basta ouvirmos uma ou duas vezes canções como "Muro", "Rap em Latim", "Tua beleza" (que remete ao célebre soneto "Les voyelles", de Rimbaud, que inicia a linhagem da linguagem intransitiva na poesia moderna), basta ouvi-las uma ou duas vezes que já temos vontade de colocá-las no repeat e nos pegamos assobiando-as na rua.
Quando colocamos para ouvir esse disco de Romulo Fróes e sua turma não temos dúvidas de que estamos diante de um acontecimento artístico. É Dona Inah, com sua voz de máscara de bronze grega, quem nos avisa: aqui, "Ninguém canta pra ninguém". Se há uma definição axiomática da arte, é essa. Existe arte quando se dá uma passagem da experiência particular à experiência comum. Quando a vida sobrevive ao vivido. Aí é Ninguém quem canta. E qualquer Zé Ninguém pode ouvir. Quando ouvimos essa frase, cantada desse jeito, sabemos onde estamos: em plena vida.
Um comentário:
Sem ironia alguma: queria enxergar isso tudo no disco do Rômulo Froes.
Ouvi e fiquei com cara de jumento assistindo televisão... coitado do Jumento.
Rola um Baco e Euterpe só pra você dissecar o disco, Marcus?
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