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terça-feira, 21 de maio de 2013

Para Adília Lopes, pelos seus 30 anos

Crônica - por Adelaide Ivánova*
Ilustração por Janio Santos
De trás da minha bancada no salão de depilação brasileira em Berlim eu vejo o mundo. E ele é como Adília Lopes disse: “uma bandeja de inox”. Ali, anotando os appointments, eu me sinto cuidando das minhas clientes e dos seus destinos — e fazendo o trabalho dele, uma vez que o destino às vezes é , e eu não, eu sempre sou legal. O salão não é meu, e as clientes tampouco são minhas, mas como toda empregada insolente, eu sinto como se fosse.

De trás da minha bancada eu leio Adília Lopes e grifo algumas coisas. E me acho importante, me acho uma recepcionista diferenciada. Gosto de pensar que eu e Adília, juntas, ajudamos aquelas pessoas a ajeitar a vida, ajeitar os encontros, pois sabemos que mesmo num mundo frio como uma bandeja de inox, ninguém se depila por higiene ou por si mesma — a gente se depila pro outro. Depilar é resolver “um problema estético”, para usar as palavras delas, Adília Lopes e Maria José.

Ah, sim, “delas”, porque Adília Lopes, razão deste meu texto (desculpa explicar assim tão claramente, é que bebi um pouco de vinho e não sei se me fiz entender e olha, já é o terceiro parágrafo, se não ficou claro até agora preciso consertar isto antes que chegue o quarto), se chama na verdade Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. A Maria José nasceu em Lisboa, é taurina e cresceu cercada de velhos e criadas.

Maria José foi estudar física e teve um treco. Entender que o mundo dói doeu na Maria José, ela ficou besta — menina, olha o mundo, que coisa, não tem romance, o mundo gira e manda a física, não o físico. Maria ficou passada (eu ficaria também, ainda bem que não entendo nada), tão passada que teve um negócio. Foi parar no hospital, o médico a mandou parar de estudar, e lhe deram remédios, aqueles antidepressivos hediondos; Maria José era magra, ficou gorda. E assim, pariu Adília. Adília, diz a sua criadora, nasceu em 1983. É mais nova do que eu. Estudou letras e procura um namorado.

Para mim é fascinante que a pessoa comece a estudar Física e tenha um treco. Entender certas coisas — ou todas elas — estraga tudo, pois entender não implica aceitar.

Só a página de Adília no Wikipedia é em si um somatório de dramas. Nasceu Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira (eu sei, já falei), filha da Maria Adelaide. Primeira publicação: Anuário de poetas não publicados, 1984. Sofre de psicose esquizoafetiva. Como se não bastasse, é portuguesa. Tudo nela tem potencial para doer. Uma pessoa que intitula um livro de A pão e água de Colónia pode até ser normal, mas ficamos na torcida que não. E fica pior: Adília Lopes é in-encontrável, mesmo quando nos parece que tudo que ela quer é ser encontrada, mesmo tendo vinte e um (!) livros publicados.

Procurar por livros da autora foi decepcionante: nas livrarias brasileiras, há apenas a antologia da Cosac Naify. Nas portuguesas, só se encontram as obras completas, que custam 50 euros (preço proibitivo para uma recepcionista de salão de beleza como eu). Todos os outros trabalhos simplesmente pararam de ser editados. Não há chance. Quem tem, tem, quem não tem, que mude de emprego e compre as obras completas. Ah, o Google achou a biblioteca mais próxima da minha residência que tem uma das obras da autora. Fica em Hamburgo. Hamburgo está a 289km de distância. Ou seja: Adília está longe.

“Sou uma personagem

de ficção científica

escrevo para me casar”

Com isso entendi que a obra de Adília é como um namorado seu: imaginária. Onde anda o rapaz a quem ela, Maria José, dedica linhas e mais linhas? Por que ele não apareceu? Adília Lopes escreve na expectativa e se Kurt Cobain usava seu famoso amigo imaginário para aplacar a solidão, Adília usa o seu para confirmá-la. O namorado imaginário só existe porque o outro, real, nunca apareceu.

“Errei (pequei)

estou arrependida

(antes não fodida

que mal fodida)”

Essa confirmação, no entanto, não vem da aceitação. Da mesma forma como rejeitou as leis da física, Adília escreve não porque acolhe esse abandono, mas para conseguir acolhê-lo. Adília não protesta. Com papel e caneta (ela escreve à mão, eu li numa entrevista), ela mostra que não é o aceitar, mas o seu exercício que importa.

“Deus não me deu

um namorado

deu-me

o martírio branco

de não o ter”

Num mundo à prova de erro público, de personal shoppers e Photoshop, o que intriga nessa mulher é exatamente sua aparência ordinária, familiar. Adília Lopes é a encalhada clássica, aquela diante da qual nossa empatia fraqueja, quase como se o encalhamento fosse sua responsabilidade. Mas em Adília a figura trai a idéia: eis uma mulher de vida interna transbordante, com potencial para se misturar ao mundo, entendê-lo e explicá-lo e, mais ainda, generosamente descrevê-lo. Adília é pura empatia — diferentemente de todos nós e independentemente de sua aparência. E se tem alguém que merecia ser amada e admirada, ah Adília, esta és tu, e diante de ti eu fico com raiva que Selena Gomez seja feliz no amor.

“O taxista

que me leva

para casa

quer ser meu namorado

você deve ser uma moça porreira

e eu tristíssima gorda disforme

digo-lhe que não pode ser (...)”

Mas se engana quem pensa que nos alindamos para sermos amados. A gente se embeleza é para facilitar a vida do outro. É um ato de generosidade, pois se algo na carcaça está fora da ordem, e perdemos ou ganhamos peso, e a raiz do cabelo mostra uma cor que não condiz com a das pontas, as pessoas se inquietam, e nos fazem e se fazem perguntas (que nem sempre queremos responder). Por isso mantêm-se a higiene e a beleza: para manter a ordem mundial.

No caso de Adília, de preocupação sofremos muito mais nós do que ela, pois sua aparência é tão somente um retrato do seu desmantelo interior. Não há com que se preocupar. Está tudo errado, e dói, mas não temos nada que ver com isso. Livremos a Adília da expectativa de um cabelo Wellaton e de uma magreza que o antidepressivo tirou há muito tempo. Fica a escrita, e devíamos nos dar por satisfeitos.

* fotógrafa pernambucana residente em Berlim.

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