Amazonense radicado em São Paulo, o advogado Almino Afonso viveu o governo João Goulart do primeiro ao último dia. Foi líder na Câmara do partido do presidente, o PTB, ministro do Trabalho e da Previdência Social, aconselhou Jango em decisões importantes e testemunhou episódios centrais da história do País. Afonso recorda os momentos que antecederam ou se desenvolveram durante o golpe de 1964. Seu depoimento foi gravado no início de fevereiro, para o documentário Jango – Marcado para Cair, produzido por Paulo de Tarso Santos Filho. São observações de quem viveu um dos períodos mais conturbados da vida brasileira, no olho do furacão.
Golpe desde a posse
Num certo momento, após a renúncia de Jânio, o presidente João Goulart me telefona de Paris, vindo de Cingapura, no retorno da China. Queria saber como estava o quadro e revela o seguinte: “Eu recebi um telefonema do senador Afonso Arinos e do deputado San Tiago Dantas, informando de que há uma cogitação de, através do parlamentarismo, superar a crise e permitir que eu assuma como chefe de Estado. Qual a sua opinião?”
Eu disse: “Presidente, eu sou parlamentarista por formação doutrinária, mas neste momento é golpe de Estado. E, como golpe, eu não aceito”. Ele disse: “Bem, eu não estou assumindo nenhuma aceitação, mas gostaria que a bancada analisasse”.
No dia seguinte, no gabinete do presidente interino Ranieri Mazzilli, com a presença dos três ministros militares que queriam impedir a posse de Jango, somos convocados. Todos os líderes dos partidos, inclusive eu, um jovem líder do PTB. Eu me vi no dever de relatar o diálogo que tinha tido com o presidente. Ao meu lado estava o líder da UDN na Câmara, coronel Menezes Cortes, que se entusiasmou e transformou a conversa exploratória entre Arinos, San Tiago e Jango numa proposta. A detonação real do parlamentarismo nasce nesse episódio. Menezes Cortes ouve a narrativa que fiz e passa a defender a ideia com entusiasmo.
Eu me mantive na liderança do PTB até o último minuto. A esmagadora maioria do partido votou contra, mas, se a memória não me falha, 15 votaram a favor. Ou porque se consideravam parlamentaristas, ou porque eram mais amigos do presidente. Se Jango aceitou, votavam com ele. Mas o PTB, em sua maioria, ficou contra o parlamentarismo.
Aquilo era um golpe de Estado no sentido mais amplo. A Constituição de 1946 não permitia que uma emenda, alterando a ordem constitucional, fosse votada em clima de choque interno, ou de “convulsão intestina”, essa expressão curiosa.
O inimigo americano
A informação do quanto podia haver, comprovadamente, de participação dos Estados Unidos na articulação de um golpe vem num crescendo. Além daquela batalha campal de dizer que o presidente era comunista, e que influiu enormemente na coesão dos militares, foi a nossa política internacional que realmente passou a chocar os interesses americanos.
Há um momento em que os EUA descem para uma conferência em Punta del Este. Congresso da Organização dos Estados Americanos. O secretário de Estado americano propõe, formalmente, a expulsão de Cuba da OEA. Por quê? Ela tinha passado a ser um órgão comunista. Em nome disso, não podia continuar na OEA.
Quem faz a sustentação excepcional contra isso chama-se San Tiago Dantas. Nosso ministro das Relações Exteriores. Argumenta, demonstra juridicamente. Tudo o que você pode imaginar. E ganha. Os EUA perderam a batalha em Punta del Este. Você pode imaginar, para o orgulho americano, o quanto isso foi?
Há um segundo momento, na crise dos mísseis soviéticos incrustados na costa cubana, apontados em direção à Flórida. John Kennedy manda uma carta que não era um convite, era uma convocação para que o presidente do Brasil apoiasse a posição dos Estados Unidos – e invadíssemos Cuba com eles. Bom, o presidente reúne no seu gabinete. Ele chega com a carta do Kennedy, que tinha recebido do embaixador. Já trazia à mão anotações com a opinião dele. E houve uma tarde admirável de encontro político. Ao término, ficou deliberada a recusa.
Um governo desinformado
Na manhã de 31 de março, quando as tropas do general Olímpio Mourão Filho seguiam em direção ao Rio de Janeiro, desde lá de Juiz de Fora, eu fui à Câmara, em Brasília. A Câmara reunia-se habitualmente pela tarde e, com alguma frequência, à noite. Pela manhã, nunca. Portanto, havia algo estranho. Entrei numa das rodas. “Começou o golpe”, diziam uns. Outros, favoráveis, comemoravam: “Começou a Revolução”. Enfim, revelavam a marcha do general Mourão. Eu não sabia de nada.
O presidente estava no Rio, no Palácio das Laranjeiras. O senador Artur Virgílio Filho, que era líder do governo no Senado, ligou para ele. Eu fiquei ouvindo na extensão. “Presidente, está aqui o Almino, me contando o quadro que acaba de ouvir, a respeito da marcha do general Mourão. Como vou ter de falar necessariamente sobre esse assunto no Senado, estou lhe telefonando para pedir as suas instruções.” Responde o ilustre presidente João Goulart, ao meio-dia de 31 de março de 64. “Artur, isso tudo é fantasia da oposição. Ficam criando um quadro de alarme para ver se nos tiram do controle da situação. É um absurdo isso.”
Passava por ele o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar. O presidente o interpelou. “General, o senador Artur Virgílio acaba de me dizer alguma coisa sobre uma marcha de revoltosos. O que há disso?” Pergunta ao chefe de sua Casa Militar. Responde o general: “Presidente, não há nada. É um movimento de tropas rotineiro que se dá no Exército. Não há absolutamente nada”. Jango insiste: “General, não há nada?” Ele garante: “Nada, presidente, estou lhe dizendo”. Desligamos.
A Câmara não era mais um fervedouro. Era um comício. Um barulho, uma agitação. Eu entro numa roda e digo o que acabo de ouvir do presidente. Aí o deputado Carlos Murilo me tira da roda.
“Almino, se o presidente João Goulart está dizendo isso como uma forma de suavizar o clima de tensão, eu não sei se isso terá efeito. Agora, se ele está acreditando na verdade do que disse a vocês, está perdido. Porque, desde a madrugada de hoje, Belo Horizonte está em pé de guerra. O governador Magalhães Pinto já assumiu o comando da revolução. Isso é público desde a madrugada.”
Bom, seria injusto, leviano, dizer que o general Assis Brasil tenha de alguma maneira contribuído para um desfecho negativo do nosso governo. Seria uma acusação irresponsável. Mas que ele era de uma incompetência absoluta, isso eu posso dizer. Não saber ao meio-dia de um fato que vinha desde a madrugada é inacreditável. E o pior: o presidente João Goulart só foi formalmente comunicado da marcha do general Mourão às 6 da tarde do dia 31. Por um bilhete do ministro da Justiça, Abelardo Jurema.
Duas cusparadas cívicas
Na casa do deputado Bocayuva Cunha toca o telefone. Era uma das secretárias do senador Auro de Moura Andrade convocando para uma reunião extraordinária do Congresso, reunião conjunta da Câmara e do Senado. À 1h30 da manhã de 2 de abril. Não seria para loas, certamente.
Na hora da sessão, Moura Andrade começa um discursinho horroroso, de poucas linhas, depois publicado em toda parte. “Todo mundo sabe que o senhor presidente da República, já a esta altura,tendo deixado Brasília, na verdade deixou o governo acéfalo. Portanto, eu me sinto no dever de, neste instante, declarar vago o cargo de presidente da República. E que o senhor Ranieri Mazzilli, na qualidade de presidente da Câmara, assuma em caráter interino a Presidência da República. Está encerrada a sessão.”
Aí vou contar duas coisas admiráveis. Tancredo Neves, baixinho, normalmente suave, levantou e disse: “Canalha! Canalha!” Com essa voz! E o deputado Rogê Ferreira, um líder socialista, hercúleo, atlético, vai até a escadinha da mesa. Moura Andrade vinha descendo, cercado de guardas, uma segurança maior que a habitual. O Rogê mete os cotovelos, consegue abrir espaço naquela guarda e dá duas cusparadas no Moura Andrade. Que eu chamo de público, já disse muitas vezes, “duas cusparadas cívicas”.
Imprensa em campanha
Com a exceção honrosa da Última Hora, todos os jornais tiveram uma atitude de bloqueio a respeito do presidente João Goulart. Até para justificar a atitude deles próprios, que tramaram e ajudaram o golpe. Trataram de obscurecer inteiramente tudo quanto pudesse de algum modo significar algo favorável ao presidente. Houve certo instante em que o deputado Bilac Pinto, da UDN, passou a fazer sistematicamente discursos na Câmara, com a acusação de que o presidente estava armando a chamada “Campanha Revolucionária”. Para quem conhecesse o presidente, imaginar ele próprio assumindo uma ação desse tipo era tão fora de propósito. Mas Bilac Pinto insistia.
Estou convencido de que técnicos de ação revolucionária o ensinaram a fazer esses discursos. Não acredito que ele, o jurista que era, sequer soubesse dos dados com que argumentou. Mas o importante é que os principais jornais de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, do Recife, estampavam o assunto nas manchetes. “Deputado Bilac Pinto denuncia o golpe de João Goulart”, “Bilac Pinto mostra onde o presidente está armando a Revolução”.
Todos os jornais, fora a Última Hora. Manchete! Manchete!
Eu diria que foi antidemocrático. Profundamente. Porque, quando você deforma a verdade, você desserve à história e ao País. Isso hoje eu digo da maneira mais clara.
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