por Paulo Moreira Leite
Depois de passar os últimos quinze dias em brados onde tentava reaprender a Marselhesa em cursos à distância, nossa oposição conservadora só precisou ouvir a proposta de uma Constituinte exclusiva para realizar a reforma política para voltar à melodia de sempre, longe do povo, procurando ensaiar o coro ridículo de denunciar de chavismo e autoritarismo.
Vamos combinar que pode haver uma crítica técnica aqui. Alguns juristas dizem – ou disseram – que não cabe fazer uma Constituinte parcial, para discutir um tema específico. Vamos ver.
Também ouvi quem dissesse que seria possível resolver a reforma política por uma PEC, mais fácil de fazer e de aprovar. Mas este argumento é politicamente ilusório. Em sua configuração atual, o Congresso rejeitou e muito provavelmente rejeitará toda reforma política. Há poucos meses, na última tentativa do deputado Henrique Fontana (PT-RS), que há anos se dedica ao assunto na Câmara, o projeto sequer foi a plenário por falta de apoio do PMDB, PSDB e DEM.
Seja como for, está na cara que se pretende usar questões jurídicas – que podem ser relevantes – para fugir do debate essencial. Já que não convém assumir abertamente uma posição impopular, ainda mais quando se pretende uma aproximação em relação a manifestantes que fazem exibições ferozes pela rua, vamos tergiversar, não é mesmo?
A reforma política foi uma opção para o governo Dilma usar de suas atribuições presidenciais e dialogar com os protestos. Pode ou não dar certo, como se sabe.
Como a política real exclui santos e seres angelicais, o esforço para bloquear essa ideia é uma tentativa de imobilizar o governo, aprofundar a paralisia do país e esperar pelo pior até 2014.
Quando a disputa fica séria, volta-se a judicialização da política. Não por acaso, ministros do STF já foram recrutados para falar do assunto, antes que os próprios políticos se manifestem.
O debate da reforma é especialmente relevante porque cria a possibilidade de eliminar o uso de dinheiro privado na política. Este é um drama importante, que envolve os grandes partidos políticos, do governo Dilma e também da oposição. Em campanha, nenhum dispensa contribuições privadas.
Um projeto das entidades que criaram o movimento Ficha Limpa, anunciado ontem em Brasília, permite que o cidadão comum dê uma contribuição de até um salário mínimo anual aos cofres partidários. Pretende-se assegurar o direito de cada um ajudar o partido de sua preferência. Sem fazer juízos finais, não custa lembrar que, quando eu era correspondente em Washington, escrevi uma reportagem sobre o sistema eleitoral americano. Contei que, para escapar do limite de contribuições individuais, grandes corporações usavam seus funcionários como laranjas. Com autorização dos empregados, destinavam uma parte de seus salários aos fundos do partido preferido por seus acionistas. Este acerto era feito no momento da contratação, quando é mais fácil obter o consentimento dos assalariados.
As relações entre política e dinheiro são um ponto essencial quando se discute como o País pode livrar-se da corrupção, prática que, em essência, consiste em alugar os poderes públicos para atender a interesses privados.
Nossa Constituição diz que cada homem vale um voto. Mas as regras de nosso sistema eleitoral permitem que você tenha um eleitor que vale um voto – e outro que vale 1 bilhão de reais. Imagine quantos votos ele pode comandar e definir. Não é só isso.
Quando se considera que temos um sistema de comunicações monopolizado e privado, com uma definição ideológica muito clara, que permite que interesses particulares transitem pelo espaço público e vice-versa, num processo despudorado e muitas vezes descarado, como se viu na cobertura dos protestos, mas também em campanhas eleitorais e em outros momentos historicamente decisivos, podemos ter uma noção clara do que está em debate. Antes que as denuncias do mensalão tivesse produzido um reforço na hipocrisia dos meios políticos, falava-se abertamente de fortunas construídas a partir de “sobras de campanha.” Quem não lembra disso?
Se você reescrever, num puro exercício teórico, a história dos partidos políticos brasileiros a luz de nosso sistema eleitoral, irá comprovar que os grandes desvios, os esquemas de corrupção e distorções que o dinheiro produziu sequer teriam ocorrido se não houvesse este sistema que privilegia o poder econômico como exercício principal para domesticar a vontade popular, cooptar lideranças instáveis e impedir avanços indispensáveis. Sem deixar de reconhecer as vitórias essenciais no plano das liberdades públicas e dos direitos individuais, e também na importância do voto popular, apesar de todas distorções, a Nova República trocou as baionetas militares pelo dinheiro grosso da alta sociedade civil. Foi a grana que criou um movimento chamado Centrão, que domesticou a Constituinte e, anos depois, garantiu reformas que eliminaram capítulos da carta de 1988 considerados nocivos ao capital estrangeiro e ao grande negócio. Foi ela que deu vida real a candidaturas conservadoras que não teriam vida fora de um pote de conserva. E foi esse dinheiro que condicionou grande parte do debate político, criando certos temas que se tornaram tabu porque envolvem interesses intocáveis. Num exemplo definitivo: se foi possível cortar recursos para saúde com o fim da CPMF não é possível nem sobre a criação de um imposto sobre grandes fortunas.
Não há nada de errado quando esse dinheiro grosso procura expressão política. Mas isso pode ser feito de modo civilizado, a partir de entidades e instituições culturais que disputam o espaço público, alimentam o debate sobre temas relevantes e até oxigenam o universo das ideias.
Não vale para comprar voto, certo?
Depois de passar os últimos quinze dias em brados onde tentava reaprender a Marselhesa em cursos à distância, nossa oposição conservadora só precisou ouvir a proposta de uma Constituinte exclusiva para realizar a reforma política para voltar à melodia de sempre, longe do povo, procurando ensaiar o coro ridículo de denunciar de chavismo e autoritarismo.
Vamos combinar que pode haver uma crítica técnica aqui. Alguns juristas dizem – ou disseram – que não cabe fazer uma Constituinte parcial, para discutir um tema específico. Vamos ver.
Também ouvi quem dissesse que seria possível resolver a reforma política por uma PEC, mais fácil de fazer e de aprovar. Mas este argumento é politicamente ilusório. Em sua configuração atual, o Congresso rejeitou e muito provavelmente rejeitará toda reforma política. Há poucos meses, na última tentativa do deputado Henrique Fontana (PT-RS), que há anos se dedica ao assunto na Câmara, o projeto sequer foi a plenário por falta de apoio do PMDB, PSDB e DEM.
Seja como for, está na cara que se pretende usar questões jurídicas – que podem ser relevantes – para fugir do debate essencial. Já que não convém assumir abertamente uma posição impopular, ainda mais quando se pretende uma aproximação em relação a manifestantes que fazem exibições ferozes pela rua, vamos tergiversar, não é mesmo?
A reforma política foi uma opção para o governo Dilma usar de suas atribuições presidenciais e dialogar com os protestos. Pode ou não dar certo, como se sabe.
Como a política real exclui santos e seres angelicais, o esforço para bloquear essa ideia é uma tentativa de imobilizar o governo, aprofundar a paralisia do país e esperar pelo pior até 2014.
Quando a disputa fica séria, volta-se a judicialização da política. Não por acaso, ministros do STF já foram recrutados para falar do assunto, antes que os próprios políticos se manifestem.
O debate da reforma é especialmente relevante porque cria a possibilidade de eliminar o uso de dinheiro privado na política. Este é um drama importante, que envolve os grandes partidos políticos, do governo Dilma e também da oposição. Em campanha, nenhum dispensa contribuições privadas.
Um projeto das entidades que criaram o movimento Ficha Limpa, anunciado ontem em Brasília, permite que o cidadão comum dê uma contribuição de até um salário mínimo anual aos cofres partidários. Pretende-se assegurar o direito de cada um ajudar o partido de sua preferência. Sem fazer juízos finais, não custa lembrar que, quando eu era correspondente em Washington, escrevi uma reportagem sobre o sistema eleitoral americano. Contei que, para escapar do limite de contribuições individuais, grandes corporações usavam seus funcionários como laranjas. Com autorização dos empregados, destinavam uma parte de seus salários aos fundos do partido preferido por seus acionistas. Este acerto era feito no momento da contratação, quando é mais fácil obter o consentimento dos assalariados.
As relações entre política e dinheiro são um ponto essencial quando se discute como o País pode livrar-se da corrupção, prática que, em essência, consiste em alugar os poderes públicos para atender a interesses privados.
Nossa Constituição diz que cada homem vale um voto. Mas as regras de nosso sistema eleitoral permitem que você tenha um eleitor que vale um voto – e outro que vale 1 bilhão de reais. Imagine quantos votos ele pode comandar e definir. Não é só isso.
Quando se considera que temos um sistema de comunicações monopolizado e privado, com uma definição ideológica muito clara, que permite que interesses particulares transitem pelo espaço público e vice-versa, num processo despudorado e muitas vezes descarado, como se viu na cobertura dos protestos, mas também em campanhas eleitorais e em outros momentos historicamente decisivos, podemos ter uma noção clara do que está em debate. Antes que as denuncias do mensalão tivesse produzido um reforço na hipocrisia dos meios políticos, falava-se abertamente de fortunas construídas a partir de “sobras de campanha.” Quem não lembra disso?
Se você reescrever, num puro exercício teórico, a história dos partidos políticos brasileiros a luz de nosso sistema eleitoral, irá comprovar que os grandes desvios, os esquemas de corrupção e distorções que o dinheiro produziu sequer teriam ocorrido se não houvesse este sistema que privilegia o poder econômico como exercício principal para domesticar a vontade popular, cooptar lideranças instáveis e impedir avanços indispensáveis. Sem deixar de reconhecer as vitórias essenciais no plano das liberdades públicas e dos direitos individuais, e também na importância do voto popular, apesar de todas distorções, a Nova República trocou as baionetas militares pelo dinheiro grosso da alta sociedade civil. Foi a grana que criou um movimento chamado Centrão, que domesticou a Constituinte e, anos depois, garantiu reformas que eliminaram capítulos da carta de 1988 considerados nocivos ao capital estrangeiro e ao grande negócio. Foi ela que deu vida real a candidaturas conservadoras que não teriam vida fora de um pote de conserva. E foi esse dinheiro que condicionou grande parte do debate político, criando certos temas que se tornaram tabu porque envolvem interesses intocáveis. Num exemplo definitivo: se foi possível cortar recursos para saúde com o fim da CPMF não é possível nem sobre a criação de um imposto sobre grandes fortunas.
Não há nada de errado quando esse dinheiro grosso procura expressão política. Mas isso pode ser feito de modo civilizado, a partir de entidades e instituições culturais que disputam o espaço público, alimentam o debate sobre temas relevantes e até oxigenam o universo das ideias.
Não vale para comprar voto, certo?
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