Domingo passado, escrevi aqui uma crônica em que satirizava o discurso mais raivoso da direita brasileira. Muita gente não entendeu: alguns se chocaram pensando que eu de fato acreditava que o problema do país era a suposta supremacia de negros, homossexuais, feministas, índios e o "poderosíssimo lobby dos antropólogos"; outros me chocaram, cumprimentando-me pela coragem (!) de apontar os verdadeiros culpados por nosso atraso. Volto ao tema para que não haja risco algum de eu estar reforçando as ideias nefastas que tentei ridicularizar.
Uma sátira é uma caricatura. Escolhemos certos traços de uma obra e produzimos outra, exagerando tais características. Narizes aparecem desproporcionalmente grandes, orelhas podem ser maiores que a cabeça, um bigode talvez chegue até o chão. É como se puséssemos uma lupa nos defeitos do original, a fim de expô-los.
Na crônica de domingo, achei que havia carregado o bastante nas tintas retrógradas para que a sátira ficasse evidente. Descrevi um quadro que, pensava eu, só poderia ser pintado por um paranoico delirante. No país bisonho do meu texto, José Maria Marin e o pastor Marco Feliciano eram de esquerda, os brancos estavam escanteados por negros, que ocupavam a direção das empresas, as mesas do Fasano e os assentos de primeira classe dos aviões. O Brasil (segundo maior exportador de soja do mundo) não era, na crônica, uma potência agrícola, por culpa das reservas indígenas. No fim, me levantava contra "as bichas" e "o crioléu". O texto não estava suficientemente descolado da realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal?
Talvez, infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da crônica ser publicada, um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam virar "ração pra peixe". Com esse pano de fundo, ser "apenas" racista, machista, homo e demofóbico pode não soar absurdo. Quem se chocou achou o personagem equivocado, mas plausível. Quem me cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. Ora, só dá para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
Em "Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma das irmãs, é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas tantas, o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o narrador indaga "como isso foi possível?". Frederick bufa e resmunga: "A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como não acontece mais vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que recebi, a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais vezes?". Vontade é o que não falta, por aí --e, infelizmente, não estou sendo irônico.
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