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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A juíza, o comandante, o professor

por Sandra Helena de Sousa

É difícil lecionar ética. Para chegar a bom termo, temos que partir de uma deseducação de nossa moralidade de primeira ordem, aquela que herdamos e diante da qual não parece haver opção fora de seus quadros de valores, frequentemente condensados em maniqueísmos toscos, do tipo “do bem” e “do mal”.

Disciplinas de ética na universidade estão amiúde voltadas para a deontologia das profissões: manuais de conduta, de deveres e prerrogativas que oferecem um marco regulatório quase sempre definido pelos pares. Uma ética prática. Mas sempre há o espaço inicial para as questões propriamente filosóficas, da meta-ética e da ética normativa, voltadas a discutir teorias da natureza humana, teoria de valores, relação com política e religião (somos livres? o que é consciência moral e como desenvolvê-la? o que são virtudes? o que é felicidade? o que é Justiça? o que é boa ação? que é bem-comum? o que é bom senso? caráter é inato ou adquirido? é bom porque deus ordena ou ele ordena porque é bom? os ideais são factíveis? há valores universais, ou tudo é relativo? etc., etc.). É quando as discussões indicam com precisão como o exercício da crítica anda em declínio entre nós, e também o quanto é preciso insistir.

Ouço muito a seguinte admoestação: “professora, mas se eu fizer isso perco o emprego” ou “ele agiu assim ou assado porque teve medo”, ou “mas não dá para ser diferente, as coisas não mudam”. Ouço isso de jovens que ainda não estão sendo acossados diretamente pelas pressões e a quem caberia sonhar e ousar outros mundos possíveis. Uma resignação antecipada e bem urdida. Quando lemos juntos Kant, na aurora do iluminismo, afirmar que “é tão cômodo ser menor, e não ter a coragem de fazer uso público de seu próprio entendimento” sinto o incômodo: depõem as armas sem nem terem tentado e sabem disso.

Mas a realidade invade a sala de modo devastador. A morte da juíza Patrícia Soares, sua trajetória profissional, seu destemor e seu sacrifício não por uma causa revolucionária, mas pelo rigoroso cumprimento do dever e da lei que todos afirmamos aceitar é um dos eventos que nos revolve de modo cataclísmico. O ideal “inatingível” da heroína moral, veiculado simbolicamente de modo ambíguo. “Mulher admirável” ou “Mulher insana” que brincou com o fogo de uma das corporações mais violentas que produzimos e sustentamos? Não precisei escolher filmes para ilustrar a figura da consciência moral elevada que age, não só a despeito do risco do desemprego, mas da própria vida. Mas eis que vem dessa corporação lição de honestidade moral pública inquestionável, exemplar: o comandante geral da PM carioca, Mário Sérgio, pede exoneração. O acusado de mentor intelectual do assassinato da juíza é um seu par e subordinado, promovido por ele recentemente. Assunção de responsabilidade, rara e preciosa.

Aí, ao ver o professor arrastado pelos cabelos e socado nas costas por um oficial PM, na Assembleia, pensei nos alunos, no País, em minha geração, nos políticos que elegi, em nossa indignação bem-comportada, em nossa falta de coragem moral. Pobre professor, não desanime, acredite, a luta realmente continua. E é cada vez mais dura.
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2011/10/05/noticiaopiniaojornal,2310224/a-juiza-o-comandante-o-professor.shtml

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