As cisternas construídas no Semiárido vêm passo-a-passo conquistando a sociedade brasileira e se firmando no país com um indiscutível valor social e político para a vida das famílias. Desde o ano passado, porém, elas passaram a agregar outro valor: o de mercado. Depois que o governo federal decidiu que compraria 300 mil cisternas de plástico no valor unitário de R$ 3.510,00, vender o reservatório virou uma ótima oportunidade de fechar negócios milionários com recursos públicos.Em depoimento para o site da revista Carta Capital, Amaury Ramos, diretor comercial da Acqualimp, empresa do grupo mexicano Rotoplas, contratada pelo Ministério da Integração Nacional para fabricação de 60 mil cisternas no valor R$ 210 milhões, disse o seguinte: “É um mercado que nos interessa muito e estamos atentos para novos contratos”. O texto abre outra aspa para o diretor: “É o maior programa de compra de sistemas de abastecimento de água no mundo. Nada chega próximo ao volume que o governo pretende comprar”.
Cisterna construída pela comunidade |
Cisternas construída pela comunidade |
A possibilidade de garantir a sua parcela na fabricação das outras 240 mil cisternas vem atiçando também as empresas nacionais. A FortLev, por exemplo, desde outubro do ano passado vem doando reservatórios, com as mesmas especificações indicadas pelo governo federal, nas comunidades rurais do Semiárido e garantindo a divulgação da ação.
Em janeiro passado, o site da empresa Comunique-se, que atua no ramo de comunicação empresarial, noticiou a doação de 20 cisternas da FortLev para a comunidade indígena Xucuru, no sertão pernambucano, dois meses depois de fazer outra doação para as famílias do povoado de São José, localizado no município de Capim Grosso, na Bahia. “A previsão da empresa é expandir o projeto, atendendo a mais municípios em todo o Brasil durante 2012 como parte de seus programas na área social”, anuncia o texto publicado no site da Comunique-se.
Além dos fabricantes dos reservatórios, os benefícios se estendem também para outros ramos, como o petroquímico. A Braskem, maior indústria deste setor das Américas e produtora de itens de plástico, é citada no texto de Clara Roman no site da Carta Capital como fornecedora de matéria-prima para a fabricação das cisternas da Acqualimp.
Ao se tornar uma oportunidade de negócio com lucro vultoso, o valor real das cisternas se desvirtua e mostra-se incompatível com as oportunidades de efetivas mudanças no cotidiano de milhares de pessoas do Semiárido brasileiro. Mas, como vivemos numa sociedade na qual a lógica de mercado geralmente prevalece sobre as demais necessidades socioambientais, transformar a cisterna em moeda é um fato - digamos assim - um tanto aceitável.
Apurando o olhar para a situação, não é difícil perceber que o que se configura é uma nova versão da indústria da seca. E esse processo exclui a população de participar da construção de soluções para seus problemas, desvalorizando seu conhecimento e privilegiando pessoas e/ou grupos que não são as famílias agricultoras do Semiárido.
“O desejo e a decisão do Governo Federal de levar água potável na perspectiva da universalização às famílias esparsas do Semiarido, é uma decisão politica e estratégica nunca antes vista e de altíssimo significado. Contudo, avaliamos equivocada a opção de fazê-lo reeditando aspectos dos processos de combata à seca, sob a alegação de fazê-lo com mais rapidez. Meses a mais ou a menos, não justificam este posicionamento”, opina o coordenador executivo da Articulação no Semi-Árido (ASA) pela Bahia, Naidison Baptista.
Quando as organizações da sociedade civil que formam a ASA se contrapõem às cisternas de plástico é porque elas, que conhecem de perto a história política, econômica, social e cultural da região, têm consciência de que primar simplesmente pelo prazo significa perder um processo rico e complexo de construção de cidadãos e cidadãs. Um processo com uma força enorme que revigora o tecido social, valorizando as pessoas no local de sua moradia e contribuindo com a elevação da sua autoestima através do resgate e respeito ao seu universo cultural.
Nos processos de democratização do acesso à água, desencandeados pela sociedade civil organizada através da ASA, foram envolvidas mais de 370 mil famílias, 12 mil pedreiros, cerca de cinco mil organizações da sociedade civil e centenas de estabelecimentos comerciais locais.
Todas estas pessoas e organizações se tornaram protagonistas de um desenvolvimento gerado de dentro para fora, capaz de possibilitar significativas mudanças nas suas vidas e das comunidades às quais pertencem. Através das cisternas, se alcançam outras conquistas cidadãs, como a organização comunitária, a geração de renda, a dinamizacão das economias locais e a valorização das relações econômicas, culturais e sociais da própria região.
Enquanto sociedade, a pergunta que precisamos fazer é: qual o modelo que queremos fortalecer – aquele de uma sociedade pautada em oportunidades de lucro a todo custo, cuja lógica do mercado é que irá determinar as decisões? Ou de uma sociedade baseada em valores como a busca da autonomia, do crescimento endógeno, da partilha da água e das riquezas? Queremos alimentar processos de dependência ou de protagonismo de pessoas e comunidades?
As cisternas de placas de cimento construídas com a participação das famílias possibilitam a construção de cidadania para quem as têm no quintal de casa. O acesso à água de qualidade passa a ser um direito conquistado. O processo, que se materializa com a cisterna, representa a gestação de outro modelo de sociedade numa região que sempre foi massacrada pelos interesses escusos de pessoas e grupos sem compromisso com o bem comum.
E as consequências desta mudança local se esparramam muito além dos limites do território do Semiárido, alcançando também quem vive em grandes centros urbanos de outras regiões do país. E sabe por quê? Porque permitir condições efetivas de construção de cidadania é enfrentar a miséria pela causa.
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_NOTICIA=7215
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