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sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

LAÍS QUE AMAVA AMÉRICO

Por Audifax Rios

Em meio aos cartões de Natal chegados no final do ano passado, uma mensagem com fotos e poemas que muito nos emocionou, mexeu com tempo e vida, puxou pela memória, reeditou lembranças. Era a participação das noventa e cinco primaveras (secas e invernos) de Dona Laís Aires Barreira, viúva do mestre Américo Barreira, mãe dos amigos Júnior, Nanan, Vólia, Olenka, Laisinha, Ivelise e Euclides. No verso, o recado do neto Tádzio assim arrematado: “De tudo fará para que o bem comum prossiga / E o porvir seja melhor que o tempo ido”. Tradução do pensamento de Dona Laís e confirmação das palavras de Américo: “Vou manter o meu compromisso com o futuro enquanto as pernas me levarem e a cabeça funcionar razoavelmente”.
Ilustração de Audifax Rios

Laís Aires esteve com Américo, solidária, até o último instante. A companheira, a mãe, a sombra da grande mulher. Laís, filha de Euclides Aires e Eliza, ele, destacado funcionário da firma Conrado Cabral & Cia, Grão Mestre de Loja Maçônica e presidente da Câmara Municipal.

Quando da morte de Américo (19 de novembro de 1993), seu irmão, o escritor e amigo Luciano Barreira, autor de Os Cassacos entre outros libelos, prestou carinhosa homenagem ao mano em forma de livro, (Américo Barreira - o mágico itinerário da liberdade), para o qual criamos capa e ilustrações. Constava de biografia, registro iconográfico, depoimentos e um caderno intitulado: Américo crítico, irônico e bem humorado. Onde o autor pinta um cidadão alegre e jovial através de histórias verdadeiras que passariam ao domínio do folclore com suas inevitáveis deturpações não fossem os conhecidos critérios de Luciano Barreira para com temas da maior seriedade. Mais tarde o jornalista Gervásio de Paula traçou perfil semelhante do grande municipalista.

Esta última parte do livro contém a narrativa de um causo no qual Dona Laís tem participação importante, pois motivo do incidente que deu margem para Américo externar seu pensamento dentro dos tenebrosos cárceres da ditadura militar. Tentaremos resumir aqui o Banquete comunista do Lano. Então: Preso no 23-BC, Américo recebia comida caseira preparada pela zelosa Laís, conforme o combinado. Certa vez a boia chegou em quantidade maior e qualidade melhor que a costumeira, sobra de um aniversário familiar.

A fartura não passou pelo crivo do oficial de plantão que pegou a deixa para fazer uma preleção diante dos presos e de seus subordinados. E soltou o verbo, taxou a alimentação enviada por Dona Laís de banquete comunista dando uma aula de civismo a sargentos cabos e soldados, salientando que ali havia alimento inviável até pra militar, imagine para o povo. Ao final perguntou: “O que é que o senhor acha disso, Dr. Américo?”. A velha raposa não deixou passar a oportunidade e usou de sua melhor arma: Explicou que a mulher e os filhos só queriam, com o ato, dar uma demonstração de solidariedade aos que ali mofavam privados da liberdade.

E que todos, até os militares, tinham direito de, ao menos, comer dignamente. O oficial cortou o barato: “Dr. Américo, pare, o senhor já falou demais”. Um capitão que assistia à distância, no dia seguinte, reuniu os presos políticos e alguns militares e proferiu breve oração desculpando-se pelo incidente, situando-o como caso isolado. Encerrando, disse da honra de ter sido aluno de Américo no Colégio Farias Brito.

Dona Laís nunca imaginou que seus quitutes fossem gerar uma revolução de quartel. Mas sabia, todas as suas interferências pesavam no desencadeamento do processo defendido pelo marido. Mesmo depois de não mais se encontrar entre nós. Como disse a filha Vólia no poema concebido para o pai, Saudade: “Pois tu és muito maior que o tempo / E já tens outro caminho a seguir”.

Laís comemorou em dezembro 95 anos de vida. Os últimos 18, sem Américo. A obra do municipalista, humaníssimo e coerente, porém, ainda norteia este fim de estrada. O exemplo de sua dignidade ilumina a trilha de todos.

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