Por Márcia Alcântara
O ano era o de 1986 quando se descobriu que o longo período de seca ocorrido entre 1981 e 1985 gerou uma doença desconcertante e devastadora de vidas: a silicose em cavadores de poços da Região da Ibiapaba. Desconcertante porque parte dessa ação determinante de cavar poços com as mãos, a fim de se obter água do subsolo, partiu do governo, embutida nas atividades recomendadas pelos programas emergenciais de combate aos efeitos da seca.
Esse desmando levou a óbito, por silicose, exatamente o que seria, para melhor percepção dessa tragédia, em números totais, o correspondente ao desastre aéreo da Air France, em 2009. O que foi pior: essas vidas dizimadas pela doença sucumbiram em meio a intenso e prolongado sofrimento físico e emocional. Eram todos homens fortes, trabalhadores, até se transforarem em corpos secos, só “pele e osso”.
Enquanto cavavam o solo, inalavam a poeira das pedras desmontadas manualmente com picaretas e chibancas. Os pulmões, em sua reação imunológica de defesa, se enrijeciam até a asfixia contínua e morte. Tinham fome de ar e de comida, porém sequer conseguiam comer, dadas a inapetência e a insuficiência pulmonar. Desse modo, seus corpos literalmente secavam, tal qual o solo que cavavam.
Os desmandos desse programa eram tantos que nem instruções, nem medidas de segurança foram ensinadas às vítimas dessa nova profissão, que produziam os poços para terceiros (políticos de influência e grandes proprietários rurais), menos para eles próprios ou para suas famílias.
O maior dos agravantes era a freneticidade com que cavavam para terem um ganho irrisório por cada poço. Um trabalho de 10 anos, realizado por um grupo de voluntários e os próprios cavadores, levou à completa interrupção da ação de cavar poços manualmente na Ibiapaba, poupando então, na época, mais de mil vidas. Entretanto o rescaldo dessa mortandade foi morte precoce de mais de 200 homens, mais de uma centena de viúvas e o dobro de órfãos, sem direito indenizatório.
A excelente matéria do O POVO, Planeta Seca, mostrou, mais uma vez, a realidade dos danosos efeitos da seca, desdobrada em seus segmentos político, econômico, social e cultural, bem como os ainda presentes desmandos administrativos que sequer utilizam os recursos disponíveis de modo otimizado.
As vidas de alguns cavadores ainda continuam secas. Viúvas e órfãos esperam um pedido de perdão governamental e o reconhecimento legal por tão danosa atitude. Esse é o momento para que se faça, junto à Associação dos Silicóticos Cavadores de Poços da Ibiapaba, um reconhecimento de seus direitos, enquanto seres ainda vivos.
http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2013/02/08/noticiasjornalopiniao,3003006/corpos-secos-na-atividade-de-escavacao-de-pocos.shtml
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