Quem sou eu

Minha foto
Agrônomo, com interesses em música e política

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Direto de Philly (4) - Downton Abbey e o Brasil

Por Lucas Barros

“O conforto dos ricos depende do suprimento abundante de pobres” (Voltaire)

Não posso ser acusado de noveleiro e muito menos de entusiasta de seriado americano, mas da produção inglesa Downton Abbey não perco um capítulo. A Raquel sugeriu o programa e nem precisou me convencer depois que lemos, ainda antes da mudança para os Estates, uma excelente matéria da The Economist sobre o assunto (link abaixo). E não era na seção de cultura...


Downton Abbey é uma série, dessas infinitas enquanto duram. Já vai para a 3ª temporada. A estrutura narrativa é a mesma de um novelão, com ‘núcleos’ de pobres e ricos, com vilões e heróis, alguns personagens cômicos e outros sérios. E, ainda mais revelador: todos ouvem conversas por trás das portas ou aparecem bem na hora em que estão contando segredos de vida ou morte (!). Apesar das evidências, descobri na internet que muita gente se ofende quando chamam Downton Abbey de novela, talvez por causa do inglês britânico clássico e elegante das personagens ou porque a produção é caprichada. Os diálogos são bem escritos, mas não fazem inveja a um Dias Gomes. Enfim, é um bom novelão mesmo, cuja peculiaridade é a temática.

O enredo começa no início do século XX e vai seguindo pela Primeira Guerra Mundial adiante, acompanhando os dramas de uma família aristocrática e do séquito de serviçais que cuidam do castelo (Downton Abbey é o nome do lugar), dentro do qual se desenrola a maior parte da trama. Os ‘núcleos’ são divididos verticalmente: no subsolo, protagonismo para os empregados; do térreo para cima, foco nos lordes e ladies. O texto é hábil em desvelar as tensões dos relacionamentos de serviçais e patrões, mediados pelo desnível sócio-cultural infinito. Ou nem tão infinito, conforme os novos tempos vão desgastando a velha ordem, aos poucos e inexoravelmente. O autor, Julian Fellowes, ele próprio descendente da velha nobreza, mostra como tradições seculares começam a ser sutilmente questionadas com o declínio das estruturas vitorianas. De fora chegam notícias de movimentos por direitos trabalhistas, justiça social, voto feminino, socialismo. Num país cada vez mais industrial e urbano, aparecem novas opções de trabalho e de educação. É o ‘desenvolvimento’, a ‘modernidade’. Sinal dos tempos, uma das empregadas se demite para virar datilógrafa. Outra abandona a casa da empertigada matriarca Lady Violet (engraçadíssima, inspirada na tia-avó do Fellowes). A impagável Violet, considerando-se a mais generosa das patroas, fica atônita com a impertinência de sua ajudante pessoal: “ela vai me deixar – e para se casar! Como pode ser tão egoísta!?”

Soa familiar? Imagino que sim. A tal matéria da The Economist era, na verdade, sobre o Brasil e a chamada “crise das domésticas”, usando como metáfora o enredo de Downton Abbey. A tese: neste quesito, o Brasil de hoje passa por transformações similares às vividas pelos ingleses no final do século XIX e primeira metade do XX. Em 1891, os empregados domésticos na Inglaterra somavam 1,38 milhão, a grande maioria mulheres servindo em casas de classe média que podiam bancar uma só empregada. No mais das vezes, esta dormia no emprego e trabalhava de 5 ou 6 da manhã às 10 da noite, sete dias por semana (é por aí mesmo, pesquisei em várias fontes). Em 1911, a despeito do aumento da classe média e da demanda por serviçais, o número de empregados havia recuado para 1,27 milhão – e continuaria caindo pelas décadas seguintes. Na direção contrária, entre 1880 e 1918 a idade média de saída da escola aumentou de 10 para 14 anos – e seguiria subindo. Também surgiam novas opções de trabalho para mulheres e homens jovens em fábricas e escritórios, especialmente a partir da Primeira Guerra. E com direito a expediente terminando no final da tarde e folga nos finais de semana – para espanto da Lady Violet. “O que é fim-de-semana?!”, indagou, incrédula.

Em 2012, estima-se que apenas 65 mil pessoas trabalhavam como empregados domésticos por lá, incluindo-se neste número cozinheiras, lavadeiras, mordomos, motoristas particulares, jardineiros, etc. Claro, muitos mais trabalham como prestadores de serviços, autônomos ou vinculados a empresas, mas o relacionamento com o contratante nestes casos é muito diferente. Como bem descreve a Economist, toda relação de trabalho cria dificuldades. Porém, quando o local de trabalho é a casa do patrão as coisas são mais complexas, em parte resultado da combinação de grande proximidade física e grande distância social.

É fato que muitas circunstâncias no Brasil de hoje são diferentes das da Inglaterra do início do século XX. Por exemplo, a diferença de cor da pele entre empregados e patrões e suas implicações é uma questão mais importante para nós do que foi para eles (estatísticas mostram que, atualmente as empregadas negras tendem a ganhar menos do que as empregadas brancas). Ainda assim, a comparação é válida. Indícios da nossa “crise das domésticas” estão por toda parte. Os levantamentos de IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), IBGE, etc., são claríssimos. Nos últimos 10 dez anos, a proporção de empregados domésticos acima de 30 anos cresceu de 57% para 73% do total. Em apenas dois anos, entre 2009 e 2011, o número de empregados na faixa de 25 a 29 anos caiu 40%, sinal de que cada vez menos jovens entram nesta atividade. No mesmo período, registrou-se pela primeira vez uma redução do número absoluto de empregados domésticos – cerca de 500 mil a menos. Algumas regiões sentem a mudança mais do que outras. Em São Paulo, nos últimos quatro anos, enquanto o total de trabalhadores cresceu 11% e os salários aumentaram 8% em média, o número de empregados domésticos caiu 4% e seus salários subiram 21%. Também aumentou a média de escolaridade da categoria – 6,1 anos de estudo em 2009 contra 4,7 em 1999. Parece pouca diferença, mas é muita. O assunto dá pano pra manga e há muitos outros dados interessantes, mas devo lembrar que isso é um blog e não uma tese.

No fim das contas, parece repetir-se no Brasil o enredo da Inglaterra, onde o declínio do serviço doméstico provocou mudanças importantes. Entre elas, a disseminação de refeições prontas, roupas que amassam menos e dos eletrodomésticos (para quem podia pagar). Aliás, muita gente pensa que as tecnologias do lar tornaram as empregadas desnecessárias, mas os dados mostram exatamente o oposto: foi a falta de empregadas a preço de banana que estimulou o investimento nestas tecnologias. Por exemplo, a classe média norte-americana, há mais tempo acostumada à escassez de domésticas, adotou os novos aparelhos e produtos de limpeza muito antes da classe média britânica. Já entre nós, não falta gente que passa férias no exterior, mas ainda não tem lava-louça. Agora entendo (e compartilho) o fascínio da Raquel pelo rodo high-tech que já vem montado com pano de chão e desinfetante, muito popular aqui na Filadélfia. Limpa direitinho – e rápido.

Link da Economist: http://www.economist.com/node/21541717

Nenhum comentário: