Por Cynara Menezes
Estamos vivendo, desde o chamado “mensalão”, um preocupante processo de judicialização da política no Brasil, que cria uma situação paradoxal: enquanto a oposição manobra para tentar mudar no tapetão o que não consegue nas urnas, começam a se levantar vozes aludindo a um suposto “chavismo” imposto pelo PT ao mesmo Judiciário que condenou membros do partido. Foi essa expressão –”chavismo” ou “bolivarianismo”– a utilizada pelo ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), ao demonstrar falta de esportiva, para dizer o mínimo, quando sua tese foi derrotada no mês de setembro pela maioria da Corte, que optou pela aceitação dos embargos infringentes e pela defesa do Estado de Direito.
Não por coincidência, foi Gilmar Mendes quem entraria novamente em campo no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na semana passada para interceder em favor do registro da Rede Sustentabilidade, o partido sonhado por Marina Silva. Suplente de José Antonio Tóffoli no tribunal, Mendes compareceu à sessão para, em seu conhecido estilo tonitruante, bradar contra a “arcaica” Justiça brasileira que prejudicou Marina. Ora, por seis votos a um (o dele, Gilmar) a argumentação da Rede de que os cartórios eleitorais trabalharam mal foi rejeitada de forma veemente pelos ministros, até mesmo por Marco Aurélio Mello – que, diga-se de passagem, também votara contra a aceitação dos embargos infringentes no STF.
A Rede teve seu registro negado simplesmente porque não conseguiu reunir o número de assinaturas exigido por uma lei de 1995, oito anos antes de o PT chegar ao poder. É preciso que se diga que o grupo pró-Rede atuou de forma amadora na coleta das assinaturas. Enquanto o Pros e o Solidariedade começaram a recolher firmas um ano antes e recorreram ao auxílio de especialistas, a Rede só começou este ano e sem ajuda alguma. Louvável, mas ineficiente. Os ministros do TSE, portanto, nada fizeram além de exigir o que cobra a lei a quem quer que seja. E a Rede ficou de fora–lamentavelmente, porque em minha opinião faria bem ao PT ser confrontado com uma proposta diferente. Dura lex sed lex: a lei é dura, mas tem que ser cumprida.
Até por isso, me causou estupor a declaração atribuída a Marina Silva pelos jornais, em que adere ao conceito de Gilmar Mendes de que a causa de sua derrota no TSE foi o “chavismo” imposto ao País pelo PT. Começa mal a ex-senadora na corrida rumo à presidência se não reconhece a voz de seis ministros do Tribunal Superior Eleitoral, apelando ao recurso de acusar os membros daquela Corte de serem influenciados pelo governo. O que queria Marina? Que os demais ministros passassem por cima da lei para beneficiá-la, como fez Gilmar Mendes? Que belo exemplo de “nova forma” de fazer política…
E digo mais: qualquer um que afirmar existir “chavismo” ou “bolivarianismo” no Brasil está faltando com a verdade. É uma mentira deslavada que haja indícios de “venezuelização” do governo, para usar um termo caro aos jornais antes da vitória de Lula em 2002. E digo isso com dor no coração, porque gostaria que houvesse. Vou dizer por quê.
Se tivesse havido “chavismo” no Brasil:
– O governo teria investido na conscientização da juventude, que seria menos permeável à influência dos meios de comunicação e saberia muito bem as razões para ir às ruas protestar quando necessário;
– Teríamos concluído inteiramente o processo de reforma agrária, com o alijamento dos latifundiários do poder decisório em nosso País;
– Os médicos cubanos e de outros países já estariam há muito mais tempo atuando em lugares onde os médicos brasileiros se recusam a ir trabalhar e a saúde do nosso povo estaria bem melhor;
– A educação pública e gratuita teria máxima prioridade em detrimento do ensino privado, e consequentemente o analfabetismo teria sido eliminado: países “bolivarianos” assumidos, a Venezuela é, pelos critérios da Unesco, “território livre do analfabetismo” desde 2005, a Bolívia desde 2008 e o Equador desde 2009;
– Teríamos um salário mínimo com muito maior poder de compra (o da Venezuela, atualmente em 1024 reais, é o mais alto da América Latina);
– Algumas empresas privatizadas durante o governo Fernando Henrique Cardoso, de forma irresponsável, teriam sido reestatizadas;
– O Estado seria laico, sem qualquer influência de líderes religiosos na política e nos governos;
– O Imposto sobre as grandes fortunas já seria realidade;
– A Lei de Meios, capaz de democratizar os meios de comunicação, hoje concentrados em mãos de poucas famílias, teria sido aprovada;
– Nem se discutiria no País modificar a demarcação de terras indígenas; pelo contrário, os índios não estariam disputando seu espaço com latifundiários porque já teriam suas reservas garantidas;
– O PT estaria governando com o PSOL, não com o PMDB.
Será que é isso, no fundo, que temem a mídia, Gilmar Mendes, o PSDB e (se for verdadeira a frase a ela atribuída pelos jornais) Marina Silva? Não custa lembrar que o ministro Gilmar é campeão no Supremo em conceder liminares contra os índios, que a mídia não quer nem ouvir falar em democratizar a publicidade oficial e muito menos os meios de comunicação, e que Marina, fiel da Assembléia de Deus, andou defendendo os pastores fundamentalistas. Sobre o apreço do PSDB pela elite e pela manutenção do status quo nem se fala.
Quem é, então, que tem medo do “chavismo”? Eu não, ele me representa. Que venha o “chavismo”.
UPDATE: a Rede soltou nota desmentindo a reportagem do jornal O Globo em que Marina Silva associava o PT a “chavismo”. Confira aqui.
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