Por Rodrigo Martins
Quando a Cidade do México aprovou a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, bispos e padres promoveram uma ruidosa mobilização na tentativa de derrubar a lei, em vigor na capital mexicana desde abril de 2007. O esforço resultou inútil. Passado pouco mais de um ano, a Corte Suprema de Justiça confirmaria a constitucionalidade do texto, desafiando a Igreja na nação com o maior número de católicos do mundo depois do Brasil. A partir de então, o teólogo mexicano Julián Cruzalta, homem de gestos medidos e fala serena, perdeu a paz. Tornou-se alvo recorrente de cobranças da hierarquia eclesiástica e de ataques ferozes por parte de religiosos conservadores.
Foi como frei dominicano que ele se apresentou numa das audiências públicas que precederam o julgamento do tema ao lado dos que defendiam o direito de a mulher decidir sobre o seu corpo, inclusive para interromper uma gravidez indesejada. “Não disse uma palavra que contrariasse a doutrina católica, que há 2 mil anos prega o princípio do ‘direito à liberdade e consciência’”, justifica-se. Hoje, o religioso percorre países da América Latina como assessor teológico da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, a participar de encontros nos quais defende a educação sexual e o uso de anticoncepcionais como estratégia mais efetiva para prevenir o aborto do que a repressão às mulheres.
“Os conservadores disseminaram a tese de que haveria fila nos hospitais para as mulheres abortarem e me acusaram de defender a indústria da morte. Não desejo que nenhuma mulher latino-americana aborte, mas também não quero ver nenhuma delas ser presa ou morrer em abortos clandestinos”, explica Cruzalta, professor do Centro Teológico da Conferência de Institutos Religiosos do México. “Em quatro anos de descriminalização, pouco mais de 60 mil mulheres fizeram abortos legais na Cidade do México, uma metrópole com 20 milhões de habitantes. Somente uma delas morreu. Antes, era impossível saber quantas mulheres eram hospitalizadas ou morriam.”
Em suas peregrinações por países latinos, opinou nos debates que antecederam a aprovação da nova Constituição da Bolívia, em 2007, e do Equador, em 2008. Defendeu a tese de que a carta constitucional não deveria preservar a vida desde a concepção, como pretendiam os bispos católicos e pastores evangélicos, na tentativa de barrar leis mais permissivas em relação ao aborto. Por contrariar a orientação do Vaticano, coleciona acusações e desafetos. “Sim, essa gente não me quer bem”, diz, aos risos, sobre as denúncias de uma entidade religiosa do Peru que o acusou de ser um “falso sacerdote” interessado em promover o aborto e enganar os católicos peruanos. “Consultaram a Conferência Episcopal do México para verificar se eu era, de fato, frei dominicano. Depois, denunciaram-me à Congregação para a Doutrina da Fé no Vaticano.” Herdeira da Inquisição, trata-se da mesma congregação que, em 1984 e sob a chefia do então cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento XVI, excomungou o frei franciscano Leonardo Boff, ícone da Teologia da Libertação no Brasil.
Cruzalta aguarda a convocação da Santa Sé para esclarecer o assunto. “O curioso é que o bispo de Santillo, no Peru, havia sido meu professor no seminário e estranhou toda aquela manobra. Nunca defendi o aborto, e sim o direito de a mulher decidir. A lei não obriga ninguém a fazer essa escolha”, diz o religioso. “Sou a favor da educação sexual e da contracepção, mas geralmente os mesmos grupos que se opõem ao aborto são contrários a esse tipo de política, que evita a gravidez indesejada.”
Se os grupos católicos mais conservadores fecham as portas ao “frei abortista”, como o denominam, não faltam convites ao religioso para participar de seminários. Em passagem por São Paulo, às vésperas de participar de uma palestra no interior paulista, Cruzalta diz prever um “retrocesso” em relação aos direitos reprodutivos em seu país. Segundo o dominicano, em reação à legalização do aborto na capital, 18 das 32 províncias do México aprovaram penas mais duras às mulheres que abortam e incluíram nas suas constituições locais a defesa da vida desde a concepção. “Para ter o apoio da Igreja nas próximas eleições, o Partido Liberal comprometeu-se a não propor a descriminalização em todo o país. Então vivemos essa situação esdrúxula, na qual as mulheres do interior com condições financeiras de viajar à capital e têm acesso ao aborto seguro, e as demais, não.”
Diante desse cenário, Cruzalta evita celebrações quando um país anuncia a intenção de votar uma lei que descriminaliza o aborto, como fez recentemente a Argentina. “Em qualquer troca de governo ou dos partidos que detêm o poder, pode haver retrocessos”, avalia. “A Igreja ainda exerce um controle social fortíssimo. Há pessoas que não frequentam uma missa há 20 anos, mas ainda têm na cabeça a cartilha da hierarquia católica, o sentimento de culpa, a visão infantilizadora de que ela precisa seguir exatamente o que os sacerdotes ordenam. Na Europa é diferente, os cidadãos são adultos e responsáveis por suas escolhas e sabem diferenciar assuntos religioso daqueles do Estado.”
Para justificar suas posições dentro da Igreja, Cruzalta cita de cabeça textos de Tomás de Aquino, teólogo do século XIII, e ampara-se até mesmo nas palavras de Ratzinger, “em 1968, ele era professor de teologia e dizia: ‘Acima do papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso obedecer primeiro, se for necessário inclusive contra o que diga a autoridade eclesiástica’”, afirma. “Não posso apoiar uma lei que criminaliza as mulheres. O papa voltou a condenar o aborto na última visita que fez a Madri. Mas ele não corre o risco de morrer vítima de um procedimento clandestino malsucedido”, alfineta, pouco antes de pedir uma cópia da entrevista assim que o texto for publicado. “Tenho certeza de que terei de dar explicações ao voltar ao México.”
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