Por Paulo Nogueira
Jornalista, como os ginecologistas segundo Nelson Rodrigues, deveria ser um santo, um São Francisco de Assis. Andar de sandálias, ter vida reta, fazer voto de pobreza e servir ao público. Falar com os passarinhos, eventualmente.
Só que não somos São Francisco.
Mas podemos ser razoavelmente bons, se nos empenharmos para isso. Se fizermos uma espécie de ginástica interior. É possível diminuir a distância que nos separa de São Francisco.
Sempre que montei equipes, me preocupei com caráter, tanto quanto com competência. Errei no julgamento, algumas vezes. Na maior parte, acertei. É o que interessa.
Em minha carreira, o maior exemplo do oposto da santidade que conheci numa redação foi Mario Sergio Conti. Nunca vi um jornalista tão ruim – mau, maldoso, quero dizer – quanto ele.
Como é tecnicamente bom, e como caráter não é coisa muto cobrada na imprensa brasileira, Mario fez uma carreira que o levou a cargos de destaque. Chegou a diretor da Veja. A ascensão de Mario acabou sendo um problema para o caráter, em geral, do jornalismo brasileiro. Porque ele, com poder, acabaria gerando iguais. Maus gostam de maus. Maus promovem maus. Maus se reproduzem. Não são apenas os bons que lideram por exemplo. Os maus também.
O ápice da maldade de Mario foi quando escreveu, na Veja, que era ruim derrubar árvores para imprimir livros como os de Caio Fernando Abreu. Ele tinha alguma diferença pessoal com Caio Fernando, e fez o que fez. Na gestão de Mario, João Gilberto era tratado como Deus, por ordem sua, e Caetano Veloso como demônio. E alguma questão pessoal que ele teve com Otavio Frias Filho o levou a proibir os editores da Veja São Paulo de escrever, na seção cultural da revista, o nome dele na resenha de sua peça, Rancor. Era uma peça sem autor, na Vejinha.
Nas escolas de jornalismo, Mario serviria como um antiexemplo formidável.
Garotos, prestem atenção nisso. Prestaram? Agora façam o contrário.
A maldade de Mario, sob controle enquanto ele era mais um numa redação de muitos, se revelaria espetacularmente quando ele sucedeu JR Guzzo na direção da Veja. “Não sou bom para fazer sucessor”, me disse, certa vez, rindo, Guzzo. Mario, como soldado numa redação, seria um problema pequeno. Como general, virou um problema grande.
Guzzo achou que conhecia Mario, mas não conhecia. Uma das maiores lições de sabedoria que recebi foi numa conversa que tive, aos 20 e poucos anos, com Sérgio Pompeu, um gigante moral. Sérgio foi diretor da Veja ao lado de Guzzo, e depois virou secretário editorial da Abril. Ele trabalhara sob meu pai na Folha, e fui conversar com ele para ver se eu poderia fazer um estágio na Abril, em abril de 1980.
Eu tinha ouvido falar muito de Elio Gaspari, e perguntei a Sérgio como era ele. “Não sei”, respondeu Sérgio em sua voz mansa, cadenciada. “Só fui chefe dele. Você conhece uma pessoa apenas quando é chefiado por ela.”
Sócrates não falaria coisa mais sábia sobre as relações entre as pessoas na vida corporativa e, também, nas redações. (Em caráter, Sérgio foi sempre uma referência para mim. Acompanhei com tristeza solidária seu declínio pessoal e profissional. Visitei-o várias vezes na casa de repouso em que ele lutava contra problemas mentais, e da qual só sairia morto.)
Como Guzzo – o maior editor de revistas da história da imprensa brasileira, um gênio para entender o que o leitor quer e o que não quer, e um mestre na arte de escrever e reescrever– apenas comandara Mario, não o conhecia. Só viu quem ele era quando o punhal de Mario estava cravado em suas costas, na forma de calúnias que, de tão desonestas e tão infundadas, acabariam depondo não contra a vítima delas, mas contra o autor.
Mais que a competência, em si, tenho para mim que o que abreviou a jornada de Mario na direção da Veja foi a maldade, que recebeu, quando ele chegou ao topo, o acréscimo explosivo de uma arrogância da qual você sentia o cheiro a quilômetros.
A ausência de Mario fez bem para a revista. Seu sucessor, Tales Alvarenga, representou uma limpeza. Tales não devolveu a revista editorialmente à grandeza que tivera durante a gestão de Mino Carta, primeiro, e Guzzo, depois. Mas retirou-a do abismo moral em que Mario a atirara. Cumpriu sua missão.
A faxina teria sido completa se, numa coluna, não tivesse sobrevivido uma invenção de Mario: o colunista Diego Mainardi. Invenção e, mais que isso, alma gêmea.
Mainardi é mau, como Mario. Como polemista, e a exemplo do blogueiro Reinaldo de Azevedo, apresentou todos os defeitos de Paulo Francis – a leviandade, o descompromisso com os fatos na defesa de ideias, o amor a intrigas e calúnias, a megalomania tão antifilosófica — e nenhuma de suas virtudes, como a graça na prosa e a inteligência vivaz.
Se existisse inferno, os dois, Mario e Mainardi, teriam uma eternidade entre as chamas para colocar os assuntos em dia. Lamento, neste caso, que não exista.
Jornalista, repito, deveria ser santo, no mundo ideal.
Não somos.
Mas não precisamos, não podemos e não devemos ser maus como Mario Sergio Conti e Mainardi.
Numa frase famosa, Elio Gaspari, adjunto de Guzzo na Veja nos anos 1980, afirmou que editava textos, e não caracteres.
É um erro.
Não são apenas os textos dos jornalistas que devem ser editados. Também o caráter.
O jornalismo, sem caráter, é apenas um comércio desprezível.
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/?p=7730
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