Via Bruno Perdigão
Por Fernando Luiz Lara
Em seu clássico sobre A casa e a rua o antropólogo Roberto DaMatta esmiúça o caráter dual e paradoxal da sociedade brasileira, com uma lógica servindo para as relações privadas (a casa) e outra lógica bem distinta orientando as relações públicas (a rua). Infelizmente, quando se trata de exclusão espacial, as mesmas regras valem da porta para dentro e da porta para fora.
Para entender as regras de exclusão que regem os espaços públicos e privados brasileiros, voltemos ao urbanismo português e sua lógica espacial. Na cidade espanhola, a exclusão foi codificada em 1572 pela Lei das Índias, que determinava especificamente que só espanhóis e seus descendentes poderiam viver dentro da cidade; os nativos, relegados ao espaço de fora. A mesma Lei das Índias que sedimentou o urbanismo ortogonal hispano-americano, já usado desde Santa Fé, o acampamento militar castelhano responsável pela conquista de Granada naquele mesmo fatídico ano de 1492. A lógica militar dos portugueses construtores de fortes e portos era um pouco diversa. Na cidade portuguesa, imperava a ambivalência que deixava a cidade crescer pelos caminhos naturais, seguindo a melhor topografia a partir do Paço Municipal. A mesma ambivalência também permitia que senhores e escravos coexistissem com alguma proximidade física, o que implicava exagerar na distância social.
Recordemos que, a partir dos caminhos rurais que iam se transformando em ruas, o urbanismo colonial português vendia os lotes por “testada”, ou seja, o valor do lote era medido pela medida de sua frente, de sua interseção com o espaço público. Casinhas de janela e porta eram as mais simples, com lotes que chegavam a apenas 5 metros de largura. Grandes sobrados urbanos chegavam a medir 20 metros ou mais, uma ostentação digna da riqueza das minas, do açúcar ou do café. Interessante é notar que a profundidade do lote valia muito pouco ou quase nada, na maioria das vezes a propriedade ia até o curso d’água no fundo do vale ou ao pé do morro. Escondidos nos fundos desses lotes, moravam os escravos (até 1888) ou os agregados (depois da abolição). Responsáveis por fazer funcionar essas cidades sem esgoto, sem água e sem transporte público, os agregados deveriam saber muito bem “o seu lugar”, ou seja: o espaço invisível do fundo dos lotes, literalmente os “terreiros”, longe do espaço cívico das ruas. A obsessão da polícia brasileira com a vagabundagem deriva dessas leis não escritas que regem a exclusão: pobres na rua só são admitidos carregando latas de água ou puxando carrinhos de entrega, nunca com as mãos no bolso.
Acontece que, ao longo do século XX, as ruas foram se transformando em espaços mais democráticos, impulsionados pela rápida urbanização. À medida que as ruas iam se tornando mais populares, os moradores de classe alta foram se afastando da rua, primeiro descolando suas casas da calçada, com a ajuda dos códigos de obra sanitaristas da virada do século, que introduziram os afastamentos obrigatórios. Depois vieram os muros, e quando os muros se tornaram ineficientes, foi adicionado todo tipo de equipamento de segurança e, por fim, proliferaram os condomínios fechados.
Uma leitura mais conservadora deste fenômeno de afastamento progressivo da rua diria que foi a violência urbana o grande motor desse processo. Não há dúvida de que a violência é variável importante, mas temos aqui um interessante dilema de sequência temporal. Quem nasceu primeiro: a violência ou o abandono das ruas? Jane Jacobs, referência fundamental do urbanismo dos anos 1960 e 1970, já dizia que, ao se afastar da rua, a sociedade entrega esse espaço de bandeja para a marginalidade. Com janelas e quartos de dormir colados à calçada, qualquer barulho é percebido e os olhos se voltam para a rua em questão de segundos. Isolada por muros, afastamentos e andares de garagem, a rua se torna na verdade muito mais perigosa. No caso das grandes cidades brasileiras, os muros subiram nos anos 1960, bem antes de a violência chegar a níveis alarmantes nos anos 1990. E assim chegamos a “City of Walls” de Teresa Caldeira, uma urbe defensiva e armada com grades, cacos de vidro, arame farpado e cerca elétrica.
No caso brasileiro, o interessante é notar que essa urbe encastelada não vive sem seus servos. Os porteiros, babás, zeladores, diaristas, lavadoras e passadeiras são os operários dessa máquina de exclusão. A marca da ambivalência brasileira está no fato de que todos convivem “cordialmente” debaixo do mesmo teto. Mas essa cordialidade acaba no exato momento em que alguém da turma dos servos se desloca do seu lugar.
No chamado Primeiro Mundo que tanto almejamos, cada um lava seu copo e abre sua porta. Existem, sim, empregados domésticos e porteiros para aqueles com renda de alguns milhões de dólares ou euros por ano. No Brasil, a desigualdade criou uma massa de servidores domésticos que, aos poucos, vai diminuindo junto com essa mesma desigualdade. Mas como argumento fundamental desta série de textos, eu chamo a atenção para o fato de que, mesmo diminuindo a desigualdade, e com ela a oferta de subempregados de todo tipo, a forma como usamos o espaço carrega uma inércia enorme e insiste em mudar ainda mais devagar. Cada condomínio, vertical ou horizontal, tem suas regras, em geral afixadas ao lado da porta do elevador, regendo quem pode ocupar determinado espaço em determinado tempo.
A presente discussão sobre os direitos trabalhistas das domésticas é material para décadas de pesquisa antropológica sobre tais regras de exclusão. Interessante notar que porteiros, predominantemente do sexo masculino, ganharam há décadas seus direitos de jornada de oito horas, folga, adicional noturno, FGTS etc… As domésticas, predominantemente do sexo feminino, tiveram de esperar uma mulher ser eleita presidenta para terem os mesmos direitos de todos os outros trabalhadores. Mas revelador mesmo são as falas daqueles que se opõem a tais direitos. A conversa vai desde a “preservação” da oportunidade de trabalho doméstico até coisas mais prosaicas do tipo: “Onde ela vai ficar durante a hora de almoço, no meu sofá?”. Ou seja, o espaço determina a exclusão de maneira não explícita, mas não menos contundente. O sofá de hoje é o banco do ônibus do Alabama de 1950.
É chocante notar quantos “sofás” temos pela cidade afora. A mesma madame que se apavora com a ideia da empregada sentada no sofá ou ganhando hora extra (afinal de contas, ela come de graça, dizem!) tem saudades do aeroporto vazio e glamoroso do século XX. Espaços destinados exclusivamente aos ricos, onde a classe trabalhadora só entra de uniforme, ou seja, a trabalho.
Vejamos o exemplo dos flanelinhas. No momento em que as ruas se tornaram “perigosas”, surgiu esse rapaz que, por uns trocados, nos vende a ilusão de que estará ali trabalhando para que nossos carros não sejam roubados. Enquanto ele ganha moedas, tudo bem, o problema começa quando o livre mercado realmente funciona e o flanelinha diz que por menos de 10 reais não garante nada. Se portando como o dono da rua, o flanelinha é uma ameaça. Uniformizado com o colete da prefeitura, ele é menos ameaçador, mesmo que sua conduta seja exatamente a mesma. O que a classe alta precisa é da ilusão de que esse exército de servidores está sob controle (no seu lugar) e que a proximidade física esteja, então, garantida pela distância social.
Em resumo, terceirizamos aos flanelinhas o controle da rua; terceirizamos aos porteiros a vigilância sobre a rua; terceirizamos às babás o cuidado das crianças na primeira infância; e terceirizamos às empregadas domésticas as tarefas de casa. No entanto, essa terceirização vem com regras muito claras sobre o uso do espaço. Essa é a ambivalência da sociedade brasileira, que “aceita” conviver com a diferença desde que ela, a diferença, faça todo o serviço, não reclame seus direitos e, principalmente, não venha a se sentar no sofá.
Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies
Para entender as regras de exclusão que regem os espaços públicos e privados brasileiros, voltemos ao urbanismo português e sua lógica espacial. Na cidade espanhola, a exclusão foi codificada em 1572 pela Lei das Índias, que determinava especificamente que só espanhóis e seus descendentes poderiam viver dentro da cidade; os nativos, relegados ao espaço de fora. A mesma Lei das Índias que sedimentou o urbanismo ortogonal hispano-americano, já usado desde Santa Fé, o acampamento militar castelhano responsável pela conquista de Granada naquele mesmo fatídico ano de 1492. A lógica militar dos portugueses construtores de fortes e portos era um pouco diversa. Na cidade portuguesa, imperava a ambivalência que deixava a cidade crescer pelos caminhos naturais, seguindo a melhor topografia a partir do Paço Municipal. A mesma ambivalência também permitia que senhores e escravos coexistissem com alguma proximidade física, o que implicava exagerar na distância social.
Recordemos que, a partir dos caminhos rurais que iam se transformando em ruas, o urbanismo colonial português vendia os lotes por “testada”, ou seja, o valor do lote era medido pela medida de sua frente, de sua interseção com o espaço público. Casinhas de janela e porta eram as mais simples, com lotes que chegavam a apenas 5 metros de largura. Grandes sobrados urbanos chegavam a medir 20 metros ou mais, uma ostentação digna da riqueza das minas, do açúcar ou do café. Interessante é notar que a profundidade do lote valia muito pouco ou quase nada, na maioria das vezes a propriedade ia até o curso d’água no fundo do vale ou ao pé do morro. Escondidos nos fundos desses lotes, moravam os escravos (até 1888) ou os agregados (depois da abolição). Responsáveis por fazer funcionar essas cidades sem esgoto, sem água e sem transporte público, os agregados deveriam saber muito bem “o seu lugar”, ou seja: o espaço invisível do fundo dos lotes, literalmente os “terreiros”, longe do espaço cívico das ruas. A obsessão da polícia brasileira com a vagabundagem deriva dessas leis não escritas que regem a exclusão: pobres na rua só são admitidos carregando latas de água ou puxando carrinhos de entrega, nunca com as mãos no bolso.
Ilustração: Thiago Balbi |
Uma leitura mais conservadora deste fenômeno de afastamento progressivo da rua diria que foi a violência urbana o grande motor desse processo. Não há dúvida de que a violência é variável importante, mas temos aqui um interessante dilema de sequência temporal. Quem nasceu primeiro: a violência ou o abandono das ruas? Jane Jacobs, referência fundamental do urbanismo dos anos 1960 e 1970, já dizia que, ao se afastar da rua, a sociedade entrega esse espaço de bandeja para a marginalidade. Com janelas e quartos de dormir colados à calçada, qualquer barulho é percebido e os olhos se voltam para a rua em questão de segundos. Isolada por muros, afastamentos e andares de garagem, a rua se torna na verdade muito mais perigosa. No caso das grandes cidades brasileiras, os muros subiram nos anos 1960, bem antes de a violência chegar a níveis alarmantes nos anos 1990. E assim chegamos a “City of Walls” de Teresa Caldeira, uma urbe defensiva e armada com grades, cacos de vidro, arame farpado e cerca elétrica.
No caso brasileiro, o interessante é notar que essa urbe encastelada não vive sem seus servos. Os porteiros, babás, zeladores, diaristas, lavadoras e passadeiras são os operários dessa máquina de exclusão. A marca da ambivalência brasileira está no fato de que todos convivem “cordialmente” debaixo do mesmo teto. Mas essa cordialidade acaba no exato momento em que alguém da turma dos servos se desloca do seu lugar.
No chamado Primeiro Mundo que tanto almejamos, cada um lava seu copo e abre sua porta. Existem, sim, empregados domésticos e porteiros para aqueles com renda de alguns milhões de dólares ou euros por ano. No Brasil, a desigualdade criou uma massa de servidores domésticos que, aos poucos, vai diminuindo junto com essa mesma desigualdade. Mas como argumento fundamental desta série de textos, eu chamo a atenção para o fato de que, mesmo diminuindo a desigualdade, e com ela a oferta de subempregados de todo tipo, a forma como usamos o espaço carrega uma inércia enorme e insiste em mudar ainda mais devagar. Cada condomínio, vertical ou horizontal, tem suas regras, em geral afixadas ao lado da porta do elevador, regendo quem pode ocupar determinado espaço em determinado tempo.
A presente discussão sobre os direitos trabalhistas das domésticas é material para décadas de pesquisa antropológica sobre tais regras de exclusão. Interessante notar que porteiros, predominantemente do sexo masculino, ganharam há décadas seus direitos de jornada de oito horas, folga, adicional noturno, FGTS etc… As domésticas, predominantemente do sexo feminino, tiveram de esperar uma mulher ser eleita presidenta para terem os mesmos direitos de todos os outros trabalhadores. Mas revelador mesmo são as falas daqueles que se opõem a tais direitos. A conversa vai desde a “preservação” da oportunidade de trabalho doméstico até coisas mais prosaicas do tipo: “Onde ela vai ficar durante a hora de almoço, no meu sofá?”. Ou seja, o espaço determina a exclusão de maneira não explícita, mas não menos contundente. O sofá de hoje é o banco do ônibus do Alabama de 1950.
É chocante notar quantos “sofás” temos pela cidade afora. A mesma madame que se apavora com a ideia da empregada sentada no sofá ou ganhando hora extra (afinal de contas, ela come de graça, dizem!) tem saudades do aeroporto vazio e glamoroso do século XX. Espaços destinados exclusivamente aos ricos, onde a classe trabalhadora só entra de uniforme, ou seja, a trabalho.
Vejamos o exemplo dos flanelinhas. No momento em que as ruas se tornaram “perigosas”, surgiu esse rapaz que, por uns trocados, nos vende a ilusão de que estará ali trabalhando para que nossos carros não sejam roubados. Enquanto ele ganha moedas, tudo bem, o problema começa quando o livre mercado realmente funciona e o flanelinha diz que por menos de 10 reais não garante nada. Se portando como o dono da rua, o flanelinha é uma ameaça. Uniformizado com o colete da prefeitura, ele é menos ameaçador, mesmo que sua conduta seja exatamente a mesma. O que a classe alta precisa é da ilusão de que esse exército de servidores está sob controle (no seu lugar) e que a proximidade física esteja, então, garantida pela distância social.
Em resumo, terceirizamos aos flanelinhas o controle da rua; terceirizamos aos porteiros a vigilância sobre a rua; terceirizamos às babás o cuidado das crianças na primeira infância; e terceirizamos às empregadas domésticas as tarefas de casa. No entanto, essa terceirização vem com regras muito claras sobre o uso do espaço. Essa é a ambivalência da sociedade brasileira, que “aceita” conviver com a diferença desde que ela, a diferença, faça todo o serviço, não reclame seus direitos e, principalmente, não venha a se sentar no sofá.
Fernando Luiz Lara é arquiteto e professor associado da University of Texas at Austin, onde dirige atualmente o Brazil Center no Lozano Long Institute of Latin American Studies
Um comentário:
Texto muito bom e real
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