A imagem do poeta andarilho que entrou para o imaginário coletivo de uma cidade através de seu próprio engenho, inventando para si uma errância deliberada como extensão da franca recusa ao trabalho, alinhada à também confessa vocação para a boemia sem freios, é poeira nos olhos. E colírio pingado a conta gotas. Aos 66 anos, Mário Gomes perambula pelas ruas de Fortaleza desde a juventude, quando, aposentado por invalidez após controversas internações psiquiátricas, fundou o seu “mundo”: um “escritório” ao ar livre em plena Praça do Ferreira, coração do Centro, com direito à banco preferencial e audiência fiel para poemas escritos e recitados ao sereno, a qualquer hora do dia ou da noite, em estado de graça ou embriaguez.
Por anos a fio, o filho de dona Nenzinha e de seu Benedito - ela costureira, ele motorista -, vem fazendo da rua lugar de permanência e reinvenção de si. A casa da família, no bairro Bom Sucesso, serviu-lhe, na melhor das hipóteses, como mero dormitório. E o entra-e-sai fora de hora só deixara pistas de sua passagem relâmpago pelo ambiente doméstico graças a um refazer-se diário, à preparação minuciosa do corpo outsider para a gesta ambulante. Metido em trajes elegantes, o bon vivant sem posses, mas com carisma e inteligência incontestes, sensível às artes, dedicou-se a construir um personagem até hoje atento ao que veste e ao que lhe adorna precariamente, aos moldes de um dândi desafortunado das ruas. Assim, o paletó sem gravata virou marca-registrada, como também o charuto em punho e os sapatos bico-fino. Arranjo plástico que lhe conferiu singularidade em meio às informais rodas de conversa literárias improvisadas em torno do “escritório” do poeta da Praça do Ferreira, onde escritores e jornalistas de renome se misturavam a novos e anônimos, emergentes e anarquistas.
A camaradagem fez do poeta da Praça um dos mais reconhecidos no circuito alternativo de quem escreve por linhas tortas nas bordas da Academia. Mário Gomes conta oito livros de poemas publicados com o auxílio luxuoso de amigos endinheirados. E já venceu concurso de poesia “comendo lagartas e defecando borboletas” ou ainda armando uma orgia metafórica entre mulheres famintas que lhe devoraram em meio a um banquete antropofágico, para, ao final, salivantes, exclamarem: “como é gostoso esse Mário Gomes!”. Um homem para se comer com os olhos, é fato, lentamente, com desvelo.
Foto Deivyson Teixeira |
Passadas mais de quatro décadas de deriva e reação silenciosa ao choque paralisante da moral e dos bons costumes, gerando curtos-circuitos na engrenagem normativa e disciplinadora de um capitalismo cultural que exige produtividade e lucro diante da comercialização incessante de desejos e formas de vida, Mário Gomes acende um cigarro. Derby, comprado no retalho entre os muitos ambulantes do Centro que lhe confiam vender fiado, visto que a aposentadoria tarda mas não falha e o devedor em questão, desprendido da matéria, é de uma reconhecida honestidade. Com crédito na Praça e acenos por onde passa, há muito a tríade “casa, comida e roupa lavada” foi relativizada. Assim é que afirma, contundente: “Minha casa é meu corpo, meu carro também. Moro dentro dos meus sapatos, ora! Meu nome é Pensamento!”.
E se a apresentação impecável do poeta de outrora já não é mais a mesma, assim como encerrou-se a safra de poemas sobre papel, seu gênio permanece afiado, combinando perfeitamente com o casaco surrado junto à calça risca-de-giz amarrada com cordão. “Agora tá tudo na minha cabeça. A Oi capta tudo por satélite. Não precisa mais escrever. Fotografa e manda pela internet. Não é assim não?”, provoca o poeta, em dia com as notícias do Brasil e do mundo que ele “capta” em jornais que lê diariamente, sem falha. “Não leio mais livro e nem vejo mais filme. Tenho 66 anos, já li muita coisa!!! Então é só saber o que tá acontecendo. Você sabia que o Uruguai liberou a maconha? Pois foi. Mas o Brasil ainda não tem cabeça para isso!”, emenda, crítico.
Envergado sobre si mesmo, o homem-caracol, agora com vistas recaídas sobre o chão aonde pisa, ouve tudo e tudo vê, desta perspectiva mesmo, basta que lhe chegue uma provocação ou a palestra venha a interessar. Caminhando ao seu lado, é ele quem avisa sobre postes sem luz; calçadas deterioradas; fontes de água insuspeitadas; o melhor baião-de-dois do pedaço, a ele, e só a ele, gentilmente servido no balcão do Duda´s Burguer, em copo de plástico, como prefere; a hora exata da “fresca” para descer até o Centro Dragão do Mar e lá tomar um trago por sua conta; o número catastrófico de mortes violentas praticadas naquele mês em Fortaleza e o tipo de pássaro que, em revoada, sobrevoa a Coluna da Hora para depois segui-lo até próximo à Catedral, em uma cúmplice sinfonia ouvida diariamente.
Mário Gomes, o praticante ordinário da cidade, para usar Michel de Certeau, “joga com espaços que não se vêem e tem deles um conhecimento tão cego quanto no corpo-a-corpo amoroso”. Por último, inventou para si um guarda-roupas a céu aberto, onde casacos, calças e camisas estão embaixo de pedras e árvores que só ele identifica. Pelos olhos ardósia, a cidade que passa e também se refaz teimosamente não é a do Forte de Nossa Senhora da Assunção, fechada em si, monumentalizada, mal planejada ou aterrorizada diante das próprias feridas. Subtraído da lei do presente, Mário escreve e organiza em torno de si, como exímio aprendiz de uma história da não-linguagem, o romance de uma outra Fortaleza possível, aberta a outros modos de ser e de estar no mundo. A Fortaleza onde queremos viver e estar-com.
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