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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Amor à morte?

por Pedro Alexandre Sanches

Vai chegando ao fim o Amor à Vida da Rede Globo (e por que mesmo a novela carregava esse nome?). O copo resta meio cheio, meio vazio.

É inquestionável que a condição masculina deu vários passos adiante na trama de Walcyr Carrasco em horário nobre global. A condição masculina homossexual, em especial, foi tratada com respeito, empatia, sensibilidade e inteligência – e, quando a condição de alguns homens em particular (quaisquer homens) é aceita, tolerada e naturalizada, ganhamos todos os homens, todas as mulheres, todo mundo. Direitos ou são para todos, ou não são para ninguém. Copo cheio, copo vazio.

Não se pode dizer o mesmo, infelizmente, a respeito do tratamento dado por Carrasco à condição feminina. Os requintes de crueldade, violência e barbarismo com que as mulheres foram insultadas pela Rede Globo via Amor à Vida beirou a exacerbação, passou adiante dela, ficou com cara do mais desbragado ódio. Copo cheio de misoginia.

A misoginia atroz está bem longe de ser uma novidade na dramaturgia global. Nessa novela, entretanto, foi estratosférica a quantidade de mulheres xingadas de “piranha”, “vagabunda”, “vadia”, “periguete”, “cadela”. Pior, foi espantosa a quantidade de vezes em que cada uma dessas mulheres foi ofendida e humilhada. Entre os xingos, só ficou faltando o adjetivo “puta” – não faz muita diferença diante da aspereza das outras agressões verbais, mas por que não usar também, se os personagens homens eram frequentemente xingados (apenas) de “bicha”?

As personagens femininas que Walcyr fez tender para o “mal” foram delineadas com cargas assustadoras de ódio e fobia. Personagem exemplar da linhagem é Aline, uma moça magoada porque o doutor César "destruiu" a vida da mãe e da tia dela. E o que a jovem secretária resolveu fazer para se vingar? Passou a novela inteira fazendo sexo com o doutor César, se casando com ele, tendo filho com ele, cuidando dele. Acabou por assassinar, em cumplicidade com Ninho, a tia por quem arquitetara parte da desforra. Santa vingança esquisita, Batgirl!

Inúmeras moças “más” de Desamor à Vida exibiram esse tipo de curvatura, revelando-se pouco mais (às vezes até menos) que seres escrotos, infelizes, invejosos, desprezíveis: Amarilis (uma odiosa “destruidora" de famílias gays felizes), Leila, a mãe de Leila, Edith (não surpreende que em meio à novela a atriz Bárbara Paz tenha liderado uma campanha deprê de luto), a mãe de Edith, Gigi, doutora Glauce, a traficante (boliviana?) Alejandra, as gêmeas-não-gêmeas Nicole e Natacha (que, apesar de não-vilãs, caíram de amores por um dos piores vilões da novela, sempre tratado como mocinho pelo autor). Copo vazio para as moças.

Mesmo algumas das personagens femininas “do bem” foram tratadas aos chutes e pontapés pelo autor: Perséfone, interpretada por uma boa atriz (Fabiana Karla) vinda do humorístico Zorra Total, transitou entre “gorda” rejeitada, virgem, “gorda” virgem, palhaça de chacota da moçada e portadora fogosa de um engraçadíssimo (contém ironia) “bigodinho” genital.

A secretária Simone existiu apenas enquanto servia para ser pisada diariamente por Félix, aos xingos sadicamente insistentes de “cadela” (como será que a atriz Vera Zimmerman se sentia durante essas gravações?). A advogada Sílvia, excelente profissional, virou na vida privada uma chantagista manhosa que vale de um câncer de mama e da piedade alheia para se livrar de uma rival amorosa. Copo beeeeeeeem vazio.

E por falar em câncer. As mulheres de Carrasco foram punidas não apenas com desgraças e berros de “piranha!”. Foram vítimas de câncer, aids, lúpus, alcoolismo, eletrochoque, surras (quase sempre aplicadas por outras mulheres), espancamentos, problemas cardíacos, morte no parto, suicídio (por ingestão de cocaína, acidente automobilístico e incêndio), assassinatos.

Chegando por fim aos assassinatos, no decorrer do enredo foram vários deles, quase todos incidindo sobre mulheres (santo autor serial killer, Batman!). Elas foram mortas batendo a cabeça no banheiro do hospital (o prédio era um dos protagonistas da novela, mas desapareceu com o cansaço da looooonga trama), tesouradas. Nicole tinha câncer, mas morreu de um ataque fulminante de susto, quando soube, em pleno altar, que o mocinho Tales comia a melhor amiga dela e queria sua fortuna, não seus lindos cabelos ruivos (suicídio ou assassinato?). Copo 100% vazio, um verdadeiro feminicídio.

Enfim, lá se vai Amor à Vida. Amor? À vida??? Por que mesmo esse nome, senhora dona Globo, senhor seu Carrasco?

No balanço entre perdas e ganhos, a balança endoidou desequilibrada. Como tem sido drasticamente frequente nas janelas tradicionais da nossa mídia (tanto as fictícias quanto as jornalísticas), nosso copo coletivo resta talvez 20% cheio, 80% vazio.

http://br.noticias.yahoo.com/blogs/autor/pedro-alexandre-sanches/

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