Por Rogério Lama
Nunca saberemos exatamente como aconteceu, em que ano ocorreu, nem tampouco o grau de exatidão dos fatos. Suas biografias e declarações trazem as mais ambíguas informações sobre seus nomes, o lugar onde nasceram ou quantos álbuns gravaram. Ainda assim, imprecisão alguma tornará menos extraordinária a passagem dos irmãos Tabajaras por esse mundo. Quiçá, por ser improvável, é que a história desses dois filhos da Serra da Ibiapaba ainda esteja oculta pela poeira.
Foi aproximadamente pelo ano de 1928 que um destacamento militar liderado pelo Tenente Hildebrando M. Lima acampou no alto da Serra da Ibiapaba. Lá travaram contato com uma tribo indígena. Até então nunca haviam visto homens de cores tão diferentes. Foi o início de uma amizade entre os índios e os militares. Tudo era novo. O café, a bolacha, a corneta. Tudo. Os militares também ficaram impressionados com seus métodos de cura. Mas um dia o destacamento partiu. Nesse momento, a tribo que nunca tinha visto a lua nascer de outro lugar que não por trás das árvores, pôde ver que ela também nascia de um buraco no chão, pela vista da chapada. Seguiram o rastro deixado por aquele grupo de homens de vestes estranhas e iguais. Se soubessem que esse reencontro ainda tardaria alguns anos, aquele grupo constituído de pai, mãe, tios e uma dezena de filhos possivelmente seria dissuadido da saga que viria se desencadear.
Não se sabe qual foi a primeira cidade que visitaram, pois os poucos depoimentos de Muçapêre Tabajara por vezes destoam entre si. Nada mais normal para acontecimentos passados há oitenta anos.
Em Ibiapina ou Ubajara, não se sabe, mas o que ocorreu foi que um deles foi mordido por um animal que jamais tinham visto até aquele momento. Era um cão. O fato chamou a atenção da população que deu roupas aos índios, que seguiram caminho. Ao chegarem em Sobral se depararam com um homem amarrado e pendurado pelas pernas em plena praça. Ele havia se envolvido com a irmã de um rapaz que agora se vingava. Antes que o homem amarrado sofresse o golpe de faca, o pai dos índios, que se chamava Ugajara, atingiu o agressor com uma flecha, matando-o. Foi o início de uma fuga alucinante: foram para Fortaleza de carona num caminhão que transportava couro de gado.
Em Fortaleza conheceram água que saia do cano e casa que se montava sobre outra. Viviam num turbilhão de novidades. De Fortaleza, o mesmo caminhoneiro os levou até Senador Pompeu e indicou uma fazenda na Serra de Araripe onde poderiam viver e trabalhar. Seguiram a pé, onde foram acolhidos por um homem chamado Moisés.
Casa nova, novos problemas. Desta vez se desentenderam com cangaceiros, resultando em morte dos dois lados. O patriarca se refugiou na casa de um coronel que lhe ofereceu proteção. Quando procurado pela polícia, mais mortes. Dessa vez, três militares foram baleados. Ugajara ficou preso por mais de um ano, amarrado à uma arvore do lado de fora de uma delegacia, sem dizer e nem entender uma palavra sequer. Enquanto isso o restante da família teve que se virar pra poder se alimentar. Encontraram um terreno para plantar, mas provocaram um incêndio enquanto preparavam o plantio. Esse incidente lhes rendeu uma surra por parte do coronel “protetor”. Após o episódio do incêndio, Ugajara consegue escapar da prisão e eles tornam a fugir. Passam a ouvir dos romeiros do Cariri, histórias sobre o Rio de Janeiro e são aconselhados a irem até Natal/RN, onde conseguiriam passagens gratuitas para a Cidade Maravilhosa.
Acataram o conselho e seguem por 15 dias a pé até Natal. Passaram 20 dias na cidade sem saber a quem pedir passagem e nem guarida, já que nenhum deles falava português. Era o que precisavam pra não perderem a viagem. Juntaram o que não tinham e seguiram a pé para o Rio de Janeiro! Dessa viagem não restam muitas informações, além de que trabalharam em fazendas em troca de comida e que o 15º e último irmão nascera pelo caminho e fora entregue à uma família que lhes doou alimentos.
Três anos depois os índios cearenses chegam ao Rio e a primeira memória que guardam da cidade é da Praça Harmonia, na Gamboa, região portuária do Rio. Conseguiram um violão onde batucavam músicas indígenas nas costas do instrumento. No centro do Rio travaram um contato tímido com a efervescência musical da cidade e aprenderam, por observação, a tocar o violão pelas cordas. Muçapêre acha graça da lembrança de terem chegado a comprar uma casa em Realengo com o apurado nas calçadas. Finalmente conseguem reencontrar o Tenente Hildebrando que lhes empresta o sobrenome para que possam ser batizados. Agora, Muçapêre e Herundy se tornam Natalício e Antenor Moreira Lima.
Natalício passa três anos no serviço militar onde aprimora seus conhecimentos musicais com um violão tenor Del Vechio, tal qual o do seu conterrâneo, o multi-instrumentista Zé Menezes. Em 1942 é que conseguem sua primeira apresentação em rádio na emissora Cruzeiro do Sul, o que lhes rendeu um curto contrato.
Dali seguiram por Belo Horizonte, São Paulo, Córdoba e Buenos Aires tocando em circos, boates e cassinos até se apresentarem na Radio El Mundo de Buenos Aires se tornando, finalmente, famosos. O exotismo de dois índios violonistas gera interesse nos produtores da região e eles empreendem uma turnê pela América Latina. Foi nesse período que entram em contato com a música clássica. Natalício, deslumbrado com a obra de F. Chopin, passa a estudar inveteradamente o método de harmonia de R. Korsakov. Após essa turnê pelas Américas, Natalício e Antenor conseguem fazer alguns shows pela Europa, onde também fizeram grande sucesso, até retornarem ao Brasil em 1953. Aqui, gravam três discos pela gravadora Continental.
Depois de curto período no Brasil eles se apresentam em Porto Rico, e sentem que a proximidade era uma oportunidade para chegar aos Estados Unidos. E é isso que fazem. Quase sem dinheiro, pois não era habito de seu povo armazenar nada, os índios chegam à Nova Iorque, se hospedando num hotel barato. Aqui vale reproduzir a fala de Natalício, como prova de que empenharam as suas vidas a atropelar qualquer lei de probabilidade:
“...depois na 47, távamo jogando bola de neve, tinha uma nevada de metro de altura. Távamo jogando bola de neve contra um no outro, e jogamos uma bola de neve num camarada que deu pra dar pena! Ai ele disse assim: NATO!!! Ele me chamou de Nato! MUÇAPÊRE!!! Muçapêre é meu nome! Quando ele tirou o boné, era um antigo manager nosso! Nós tínhamos emprestado dinheiro a ele pra que ele viesse aos Estados Unidos e ai fomos à RCA Victor”
Os índios deram uma audição na RCA Victor, mas a gravadora não se empolgou por conta do eruditismo do repertório. Apresentaram então um arranjo de um standard americano: foi o suficiente para fecharem contrato para a gravação de seu primeiro disco em 1957.
Apesar do êxito da gravação, o disco não vendeu o esperado e a gravadora não renova o contrato, lançando Natalício e Antenor novamente ao ostracismo.
A participação num programa de calouros na TV em 1963 mudaria novamente o rumo da história. Los Indios Tabajaras competem tocando a Dança Ritual do Fogo, do Espanhol Manuel De Falla, mas ficam apenas em segundo lugar. Era o bastante para que a produção do programa recebesse uma enxurrada de ligações pedindo bis para a apresentação de Natalício e Antenor. Na esteira da fama repentina, os norte americanos descobrem o primeiro disco gravado pela RCA. Em 1963, os índios cearenses alcançam o feito de venderem mais de 1,5 milhão de cópias nos Estados Unidos, com sua versão para a música “Maria Elena” de Lorenzo Barcelata, o que superava a venda dos Beatles naquele ano.
Pelos próximos 10 anos, Los Indios Tabajara gravam um sem número de discos pela RCA, todos de soft jazz. Entre gravações e participações em programas de TV, os índios enchiam os bolsos de dinheiro e desapareciam por meses pelo Brasil, não deixando notícias e nem telefone para receberem recado. Isso lhes rendeu uma aura de que faziam parte de um esquema publicitário para vender discos. Eles seriam na verdade atores mexicanos, pois índios de verdade não poderiam ser aqueles virtuoses da Tv. Inclusive pode se ler na capa do álbum “Always in My Heart” o termo “The Original Indians”.
No final da década de 1970, Antenor decide abandonar a dupla e usa o que lhe restou de dinheiro para comprar uma fazenda em Mato Grosso e passa a se dedicar à causas ecológicas. Natalício, agora tocando só, dá aulas de violão para a sua esposa, uma jovem japonesa de nome Mitiko e reativa a dupla “Los Indios Tabajaras”, agora nesse confuso formato. No Japão eles gravam alguns discos com versões de músicas japonesas e voltam a fazer sucesso em salas de concerto.
Natalício Moreira Lima morre em Nova Iorque em novembro de 2009, tendo vivido aproximadamente 91 anos, já que sua tribo não comemorava aniversários. Antenor morreu aproximadamente em 2000.
Seu legado para a música, para além dos quase 50 LP´s gravados e 8 milhões de cópias vendidas, foi a de uma vida de desapego e coragem sem limites. Uma trajetória que dificilmente acha vaga em nossa balizada imaginação.
2 comentários:
Marcus Vale
Que história incrível!!! Muito interessante.
Em 2007 o fotógrafo Julio Malavazzi iniciou as filmagens que resultariam num documentário sobre a vida de Natalício e Antenor. Mas até agora nada. Acho que esse documento passaria a limpo a saga dos caras.
Pra se ter idéia, uma das "biografias" que encontrei dava como locais de nascimento deles as cidades de Crato e Tianguá. E eu pude conversar com um comerciante de Viçosa do Ceará que conhece a história deles, e ele me disse que o local da tribo deles está num lugar que não se sabe ainda hoje se é Piaui ou Ceará. Como eles saíram da mata pelo lado de cá, são cearenses e ponto final! :-))
Postar um comentário