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terça-feira, 2 de abril de 2013

Foi Deus Quem Me Deu (ou: diálogos com o Deus da prosperidade)

 Por Rogério Lama

Chico Mãozinha, agricultor da comunidade do Arisco em Quixadá, Sertão Central cearense, escreve num papel de pão uma solicitação de audiência com Deus. Amarra a missiva à um pequeno seixo, o apruma em sua baladeira e atira pra cima. Com os olhos castigados de tanta luz, vigia o solo seco ao seu redor. A pedra não volta. Afia os ouvidos à espera de ouvi-la cair no chão esturricado. Nada, também. Tudo o que se ouvia eram alguns pássaros brigando por um pedaço de sombra no único pé de algaroba que havia ali.

Foto de Wagner Viana
Voltou pra casa e passou o resto da tarde consertando sua tarrafa. Cedo ou tarde teria serventia novamente. A noite se senta na rede e bate a areia dos pés antes de se esticar quando ouve um “ô de casa”. Abre a parte de cima da porta e se depara com um homem segurando um seixo.

- Essa pedra é sua?
- Não. É do rio que secou. O que era meu estava amarrado nela.
- Isso aqui? – diz estendendo a outra mão e mostrando um papel cor de terra.
- É, sim senhor. Quebrou seu telhado?
- Não. Recebi isso de um encarregado na hora do almoço.
- Ahn... e o que o senhor quer, então?
- Sou eu quem lhe pergunta. Não querias uma audiência comigo?
- E o senhor é Deus, por acaso?
- Sim, mas não me peça milagres como prova. Acho isso um saco.
- Omi... marrapaiz... me deixe pelo menos lavar o rosto. Já volto! O senhor quer uma aguazinha de pote?
- Traga quando voltar.
- Pegue. Sente-se, por favor!
- Hmm... boa, essa espreguiçadeira...
- É o seguinte, Seu Deus: a cada vez que vou à cidade vejo mais carros com um adesivo que diz “FOI DEUS QUEM ME DEU!”. É cada carrão com vento gelado no lado de dentro! Já aqui no sertão a gente rala os joelhos toda noite pedindo água ao senhor. Mas até agora nada.
- Bom, err...
- Deixa só eu terminar, Seu Deus. Eu vou repetir: Só pedimos água! O resto é por nossa conta. Então a gente aqui do Arisco queria saber como é que faz pra conseguir a graça que o povo da cidade tá alcançando.
- Olha, Chico, você vê jornal?
- Só almoço assistindo o Barra.
- Não, eu me referia ao... esquece isso. Deixa te explicar: com a isenção temporária de IPI, sai muito mais em conta doar automóveis. A água até que tem seus incentivos fiscais, mas tem uma logística muito cara. Veja: carros-pipa e adutoras são equipamentos bem dispendiosos. Além do que fica mais difícil colar adesivos em minha honra.
- Nossa... esse cálculo deve ser fruto da sua infinita benevolência e sabedoria. É provavelmente por isso que eu não esteja entendendo.
- O que você precisa entender, Chico, é que os automóveis são bens de alto valor agregado! Fábricas de carros geram inúmeros empregos para servos que se espalham numa cadeia produtiva. E cada servo desse aguarda o dia em que eu coloque em sua vida a graça de receber um automóvel, entendeu?
- Sim... err... não. Não entendi. Afinal de contas o senhor dá ou as pessoas trabalham pra comprar o carro?
- Bom... é um trato do tipo “uma mão lava a outra”, sacou?
- Mais ou menos... mas o caso é que eu não preciso de um carro. Preciso de água, senão vou perder todas as sementes que plantei.
- Ô Chico, assim você está dificultando as coisas! Serve uma mansão com quadra de tênis na Serra do Estevão?
- Olha, eu não preciso de uma, mas... tá bom. Eu aceito a casa na serra. Ainda que eu já tenha minha casinha no Arisco.
- Deixa de ser bobo, Chico! Você vai triturar o povo de tanta inveja! Já pensou? Sua casa de muro alto e cerca elétrica com os dizeres: “FOI DEUS QUEM ME DEU”! Quanta gente vai querer ser como você! Todos perguntarão como fez pra conseguir!
- Não tinha pensado nisso, Seu Deus. Como eu faço pra alcançar o benefício?
- Ah! Agora vem a parte boa! Você precisa ir numa igreja. Lá chegando você diz que quer renunciar ao que é mundano e vai entregar ao pastor o documento dessa terra imprestável.
- Como assim? Minha terrinha? Com a casa? Minhas criações e tudo?
- É, Chico. Tudo.
- Mas eu vou morar aonde, Seu Deus?
- Ai é que está a sacada! Você vai viver na carne o que está nos escritos sagrados. Você vai ser exemplo para toda a humanidade com sua história de humildade e desapego, e a igreja vai ficar entupida de fiéis, e com mais dinheiro, mais riqueza, mais ostentação e...
- E depois de estar na rua, o que eu faço?
- Ai eu vou... eu vou... te eleger vereador de Quixadá! Em 6 meses você comprará sua mansão na serra e pintará o muro em letras garrafais que fui eu quem te deu.
-É pra isso que serve vereador?
- Não, exatamente. Mas essa é a ética do mercado.
-Hmm... até ai eu entendi. Mas senhor, se eu serei exemplo de desapego enquanto estiver na miséria, eu deixarei de sê-lo quando comprar minha mansão, não é?
- É.
- Mas o senhor havia dito que quando eu tivesse a minha mansão, todos iriam querer ser como eu. Que exemplo o senhor quer que eu dê, afinal?
- Que mania essa sua de complicar as coisas, Chico! Lembra que te expliquei sobre a cadeia produtiva? Pois é! É legal ser miserável e tal. Fica bonito na foto e tudo mais. Lembra do ex-ministro Rafael Greca, que disse que havia “lirismo na miséria”? Pois é, é bem por ai. Só que isso não dá emprego pros meus servos nas fábricas. Assim, o desejo do supérfluo é o que mantém o emprego de gente sem estudo como você!
- Ahnn... mas tem um evangelista que narrou Jesus dizendo que o reino dele não é deste mundo. Se assim é, como pode a riqueza material ter tanta importância pro senhor?
- Olha, essas declarações já me deram uma dor de cabeça danada. Vamos fazer assim: dorme bem essa noite que ela é a última que você passa aqui. Amanhã cedo leva a escritura dessas terras pra igreja e chore cheio de remorso pra impressionar todo mundo com a sua renúncia. FUI!

E assim, Chico Mãozinha seguiu a risca o que Deus lhe ordenou e na eleição seguinte se elegeu vereador. Comprou sua mansão na Serra do Estevão com quadra de tênis, pintando bem grande no muro “FOI DEUS QUEM ME DEU!”. Queria ser justo. Fazia parte do trato.

Naquele entardecer, do alto da sua mansão observou as localidades do Arisco, Califórnia e Palmares. Continuavam secos e sem perspectiva. Pela manhã desceu a serra com a escritura da mansão sob o braço e a trocou pela sua antiga fazendinha e com o que sobrou, comprou 1.200 cisternas de placa pra espalhar pelas terras que viu lá de cima.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito ótima!
Eva

Roberto Félix disse...

Excelente conto, Rogério. Parabéns!

Vólia disse...

muito legal.

Sidney disse...

Moral da história: Deus sabe como funciona o sistema, mas às vezes é preciso ir contra o sistema. rsrs Mais contos, por favor. Aceito contribuições no siderando.blogspot.com
PS. a foto do Wagner tá show.