Por Mino Carta
Em um ex-primeiro Mundo de lideranças políticas medíocres, Silvio
Berlusconi é grande personagem. Tragicômica. Não saberia definir o
volume das doses de tragédia e de comédia necessárias à combinação,
arrisco-me, porém, a imaginar que Berlusconi nas mãos de um Shakespeare
se tornaria sultão perverso, devasso e ridículo, irretocável em todos
estes aspectos altamente negativos.
Estamos em condições, isto sim, de medir com precisão, números à
disposição, a consistência do mal causado a seu país pelo premier
italiano nos últimos quatro meses: o spread, entre os títulos
alemães e os da Itália, submetida ao ataque especulativo cada vez mais
feroz, não chegava a 350 em julho passado e na quarta 9 de novembro
transpôs o umbral da falência ao atingir 553.
Quatro meses resumem 17 anos de berlusconismo, quase duas décadas de
desmandos e vulgaridades, de atraso econômico e lassidão moral, de
relacionamento suspeito com o crime organizado e de assaltos à
Constituição à sombra da ditadura da maioria, o espectro sinistro que
conforme Tocqueville sempre ameaça a democracia. Em 17 anos, a Itália de
Berlusconi dilapidou brutalmente o prestígio conquistado desde o
imediato pós-guerra pela força do trabalho, pelo arrojo empresarial,
pela solidez do seu Estado de Direito.
Um país paupérrimo em recursos naturais, dotado de
terras férteis em menos da metade da sua superfície, tornou-se um dos
mais ricos do mundo, entre eles seu PIB alcançou o quinto lugar. Seria o
caso de dizer que o bem-estar, garantido por uma razoável distribuição
de renda a despeito das arcaicas diferenças entre Norte e Sul, em parte
preservadas, não fez bem à nação peninsular? Ocorre-me, não se espantem,
um verso de Dante: chi è causa del suo mal, pianga se stesso. Quem causa o seu mal, chore a si mesmo. Pois é, hoje me dou ao luxo de evocar os gênios.
Está clara a culpa em cartório dos italianos, que elegeram e
reelegeram o sultão três vezes. Em um lapso de tempo tão largo, não
foram capazes de entender quem é Berlusconi e aonde seria capaz de
arrastá-los, em nome dos interesses exclusivamente seus e da sua turma,
em detrimento da grei. Os resistentes foram minoria, a oposição não se
habilitou a oferecer alternativas convincentes. Agora me soa patética a
patriotada dos ofendidos pelo descrédito internacional da Itália. Se a
senhora Merkel e o galinho Sarko trocam sorrisinhos quando alguém
pergunta se Berlusconi merece confiança, não cabe surpresa e tanto mais
indignação.
Nesta moldura, permito-me supor até que o Caso Battisti não teria
assumido lamentáveis proporções, precipitadas em primeiro lugar pela
ignorância brasileira, caso o governo italiano não fosse o de
Berlusconi. Meu queixo não cairia se averiguássemos que, em visita
recente ao Brasil e em contato com o então presidente Lula, o premier
declinou seu desinteresse pela sorte do terrorista assassino. Naquele
momento estava na expectativa do bunga-bunga organizado em algum
privilegiado local de São Paulo por Walter Lavitola, lobista e
proxeneta, hoje procurado pela polícia e foragido na América Central.
Deveria escolher o Brasil, talvez aqui fosse considerado herói da
desobediência civil. Certo é que, na gestão do caso o governo de Roma,
sua chancelaria e seus representantes diplomáticos foram de extrema
tibieza.
Óbvio que este específico exemplo não é relevante em
comparação com males maiores, mas nele também se destaca positivamente o
presidente da República, Giorgio Napolitano, o mais autorizado a
manifestar profunda contrariedade com o desfecho do Caso Battisti e com a
situação atual do seu país, e a defender o Estado Democrático de
Direito que a Itália é desde a derrubada do fascismo, e continua a ser, a
despeito de Berlusconi. Neste momento, o país conta com um honrado,
notável presidente, pronto a desempenhar um papel que de certa maneira
extrapola das funções constitucionais no justo empenho de estabelecer
limites a uma situação tão comprometida.
Observe-se que pela primeira vez na história da república italiana o
comunicado destinado a anunciar a próxima renúncia do premier em vez de
ser divulgado pelo Palácio do Governo, saiu do Quirinale, sede
presidencial. Foi a garantia que Napolitano ofereceu à nação, desafiado
pela notória inconfiabilidade de Berlusconi. É de se estranhar que em um
regime parlamentarista o presidente da República deixe de se parecer
com a rainha da Inglaterra, mas neste momento para a Itália é bom que
seja assim. Quanto a Berlusconi, tem lugar garantido no panteão dos
grandes vilões. •
http://www.cartacapital.com.br/politica/a-culpa-da-italia/?autor=42
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